Oh, yeah, well, alright
We’re jammin’
I want to jam it with you
We’re jammin’, jammin’
And I hope you like jammin’ too
Ain’t no rules, ain’t no vow
We can do it anyhow
I and I will see you through
Cause every day we pay the price
With a little sacrifice
Jammin’ till the jam is through

Entrou na pista por um túnel que na sua fronteira entre o anonimato e a glória tinha uma bandeira argentina com o rosto de Maradona. Era certamente uma provocação para os brasileiros, mas também podia ser alguém a exigir que Bolt acrescentasse o génio canhoto à sua lista de magníficos, que configura apenas Pele e Muhammad Ali. Andou ao longo de uma das linhas, contou passos, colou a sua fita, de onde começará pela última vez.

Acelerou pela primeira vez, para testar o motor mais uma vez. Estava fino. Levantou as mãos e recebeu uma grande ovação. Ia dizendo adeus, enquanto os que estavam no Estádio Olímpico respondiam com palmas de amor. Veem-se bandeiras da Jamaica, veem-se saltos e mãos a quererem chegar mais alto. Ele toca no peito. E lá caminha, serenamente, para o ponto onde vai esperar pelo testemunho do colega jamaicano, para mais uma batalha de 4x100m. Bolt olhava para o chão, com as mãos na anca. Estaria a pensar que era o fim? Estaria a acusar a pressão, por ter de acabar em beleza? Na véspera, nos 200m, admitiu que as pernas deixaram de responder nos últimos 100 metros. Estaria reticente?

Começa então a ouvir-se o som nos speakers que promete suspense e angustia. Ouve-se “shhh”, como se fosse no cinema, imitando o herói jamaicano. Depois foi a vez de ser ele a pedir, com o indicador junto à boca. A seguir as mãos, olhando para baixo, pediam calma àquela gente.

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Jamaica's Usain Bolt competes in the Men's 4x100m Relay Final during the athletics event at the Rio 2016 Olympic Games at the Olympic Stadium in Rio de Janeiro on August 19, 2016. / AFP / Adrian DENNIS (Photo credit should read ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

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Bang! E começou… A Jamaica seguia em grande forma, ao lado dos japoneses. Que surpresa, estes senhores que têm um japonês nascido na… Jamaica. Quando chegou a vez de Bolt, o público já estava a entrar noutra dimensão. Os berros iam berrando cada vez mais alto. Ele desatou a correr rumo à eternidade, rumo a uma fasquia que espera ficar alta o suficiente, para que ninguém se atreva a tentar. As bochechas enchiam e desenchiam, os olhos não largavam o seu amor antigo: o cronómetro. Não é platónico, é físico, é carnal, é real. Já está (37.27s): nove medalhas de ouro. Ele continua a correria, mais perto das pessoas, pedindo carinho e admiração. É adorado. E ele adora.

Ouve-se “Usain Bolt, Usain Bolt”. Ele sorri e começa a dançar, está a divertir-se. Está feliz. Bata palmas, agarra nas bandeiras de Jamaica e Brasil. E começa a ouvir-se reggae, pela voz de um senhor que lhe diz muito, Bob Marley: “Jamming”. Vai posando para as centenas de objetivas. Vai mandando beijos, recebe-os de volta em forma de grito primitivo.

Faz o seu gesto característico, com os indicadores a apontarem para longe, talvez para o seu lugar, entre as estrelas. O público na bancada fica doido. Isto é o seu recreio. Faz stop para ouvir o hino da queniana que ganhara uma prova. Depois volta a confusão. Ele beija o chão, como que agradecendo à pista tudo o que lhe deu na vida. Beija o número três da pista 3, esticando depois três dedos. É isso: três mais três mais três igual a nove medalhas de ouro. Bem-vindo à eternidade, senhor…

Jamaica's Usain Bolt celebrates his team's victory at the end of the Men's 4x100m Relay Final during the athletics event at the Rio 2016 Olympic Games at the Olympic Stadium in Rio de Janeiro on August 19, 2016. / AFP / FRANCK FIFE (Photo credit should read FRANCK FIFE/AFP/Getty Images)

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A história do homem que só foi lento uma vez na vida

A história de Usain começou em Trelawney, Jamaica, em 1986. Os seus pais ainda vivem por lá, uma terra pacata que ganhou dignidade depois de Bolt se ter transformado numa estrela mundial. Passou a haver água canalizada, estradas pavimentadas, clínicas, centros de saúde, escolas e jardins para as crianças. Bolt nem sempre foi rápido: nasceu dez dias depois do previsto. “Foi a única vez na vida que foi lento”, contou à Associated Press a mãe, Jennifer Bolt.

Aos 12 anos já competia na escola, em vários desportos, sendo muitas vezes protagonista. Aos 14 anos começou a trilhar o seu fado. O destino era o céu, uma habitação entre as estrelas, mas ele ainda nem sonhava o que vinha aí. Foi ganhando campeonatos regionais e nacionais na Jamaica. A primeira medalha chegou nas barreiras, num campeonato em casa, em Trelawny. Estreou-se nas andanças do pódio com um bronze.

O rapaz era eclético. Gostava e gosta de criquete e futebol. Quando era garoto chegou a experimentar e a dar cartas no salto em altura. Usain colocou a sua bandeira no mapa em 2002, quando fez 200 metros em 20.3 segundos. No mesmo ano faria miséria em mais duas competições, somando muitas medalhas. Mas ele foi mais além: bateu o recorde do mundo de juniores nos 200 metros — 19.93 segundos. Nascia uma estrela e uma relação íntima com os recordes. No mesmo escalão, sagrou-se campeão do mundo em 2004. Aí surgiu uma especial ligação às medalhas.

Em 2004, ano em que chegaria à maioridade, chegou também aos Jogos Olímpicos. Tinha 17 anos. Participou nos 200 metros, na linha 5. Terminaria, curiosamente, em quinto lugar (21.05s) no primeiro heat, o que seria insuficiente para seguir em frente. O sorrisinho estava lá, o talento idem, mas não chegou para mais. “Não estou como estava quando fiz o recorde mundial de juniores”, disse então, aqui citado na NBC. Nos tempos que antecederam essa prova, o jamaicano registara problemas na coxa, costas e tendão de Aquiles. “O lado bom é que estou apto para competir.”

Mas nem tudo se devia à condição física. Faltava andamento mental, outra estrutura. “Foi muito cedo para mim, cedo de mais no meu desenvolvimento, e não ia ganhar assente no quão impreparado estava”, admitiria na sua autobiografia The Fastest Man Alive: The True Story of Usain Bolt. “Os Jogos Olímpicos são um momento significativo para qualquer atleta, mas, tendo em conta a minha má condição, eu não pude pensar em desfrutar. (…) Foi uma completa perda de tempo.”

Em Pequim inventou o seu parque de diversões. Venceu em 200m, com um recorde do mundo (19.30s) — melhoraria esse recorde em 2009 (19.19s). O ouro também brilharia nos 100m (9.69s) e nos 4x100m (31.10s). Começou aqui a lenda do homem que conseguiria colocar o seu nome lado a lado com Mark Spitz, Larisa Latynina, Carl Lewis e Daavo Nurmi, como os únicos com nove medalhas de ouro (para além de Michael Phelps, que “só” tem 23 de ouro em 28 medalhas).

Em 2009 Usain Bolt teve um acidente de carro e assustou-se a sério. O seu BMW M3 capotou e deu três cambalhotas. É com este episódio que o atleta começa a sua autobiografia. O corpo de Bolt foi maior do que a desgraça, por isso continuou o seu caminho. Em 2012, nos JO de Londres, voltou a fazer das suas: mais três medalhas de ouro. Fez os 100m em 9.63s, os 200m em 19.32s e os 4x100m em 36.84s.

Entre os Jogos de Londres e os do Rio de Janeiro, Bolt venceu duas vezes os Mundiais de 2013 e 2015, mas apenas por equipas. O atleta sempre geriu o seu corpo e esforço com rigor, preferindo dar prioridade aos JO do que a dinheiro. É isto que se diz da sua gestão de carreira. Bom, talvez não se tenha dado assim tão mal: a Associação Internacional de Federações de Atletismo nomeou-o atleta masculino do ano em cinco ocasiões (2008, 2009, 2011, 2012 e 2013).

Team Jamaica (LtoR) Jamaica's Nickel Ashmeade, Jamaica's Usain Bolt, Jamaica's Asafa Powell and Jamaica's Yohan Blake celebrate after winning the Men's 4x100m Relay Final during the athletics event at the Rio 2016 Olympic Games at the Olympic Stadium in Rio de Janeiro on August 19, 2016. / AFP / Adrian DENNIS (Photo credit should read ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

(ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

No Rio de Janeiro voltou à vida olímpica, o seu El Dorado, para tentar o “impossível”, que era tão impossível como esperado: fazer o tri-tri (voltar a vencer as três provas). O homem que chegou ao Rio a sambar não deixou o Rio mal, e o Rio cuidou dele. É que muita gente ia até ao Estádio Engenhão só para o ver, e cantavam, ora reggae, ora o seu nome. Viam-se muitas bandeiras da Jamaica, o povo gritava por ele. Ele sentia-se um rei, era o herói do povo. E só por isso se explica a divisão de protagonismo entre as bandeiras jamaicana e brasileira na sua mão, quando vencia uma prova.

Está feito, nove medalhas de ouro no bolso. “Sou o maior de todos, estou feliz por ter concretizado tanto. Estou aliviado”, diria na zona mista, em conversas com jornalistas. Usain Bolt diria que foram necessárias muitas lágrimas e suor para chegar onde chegou, muito trabalho duro, pois nunca se achou imbatível.

Bolt ia dizendo adeus. Até que disse mesmo: “foi a última vez, malta. Desculpem…” Durante os Jogos Olímpicos, um jornalista perguntou-lhe que título é que mereceria uma música sobre ele, escrita e pensada por Bob Marley. “O maior de todos os tempos”, respondeu.