Ainda faltam algumas horas para as 21h30, mas o trabalho não pára no Teatro Politeama. Após o espetáculo das 17h no mesmo dia, há que não perder o ritmo para a noite. Nos camarins, os atores descansam e afinam os últimos pormenores da sua caracterização. No palco, os jacarandás artificiais continuam a soprar ao som do vento. A peça “As árvores morrem de pé”, de Alejandro Casona e encenada por Filipe La Féria, junta o sangue novo da representação com a experiência dos veteranos, até 27 de novembro.

Muitos poderão recordar a frase “Morta por dentro, mas de pé, de pé como as árvores”, sem que consigam associar facilmente de onde é que vem e por quem foi dita ou escrita. Longe vão os tempos, em que a RTP transmitia alguns espetáculos de teatro e que era possível escutar a voz e ver a interpretação da atriz Palmira Bastos. Foi “a mestre do teatro”, como a atriz Manuela Maria destaca, que tornou uma simples expressão de um guião de teatro em algo maior. Novos e velhos, sem saberem, estavam perante um clássico de Alejandro Casona.

O dramaturgo espanhol deu um “empurrão” no desenvolvimento do teatro no seu país e alargou a sua influência também a Portugal. Várias peças da autoria de Casona foram representadas no Teatro Nacional D. Maria e no Teatro Monumental, ambos em Lisboa. “As árvores morrem de pé” é um rompimento com os padrões estéticos e literários da altura: de um teatro naturalista onde tudo é palpável e lógico, passa-se para o teatro de inteligência, em que a ilusão e os conceitos de verdade e mentira são expostos em palco.

A peça em palco no Teatro Politeama é uma história de uma organização clandestina que ajuda as pessoas a serem felizes – com alguns toques de mentira, artimanhas e disfarces. Mas também com literatura: “A poesia não necessita de estar apenas dos livros”, diz o diretor da organização, Maurício, interpretado pelo ator Carlos Paulo. Se nos primeiros minutos de “As árvores morrem de pé”, vários membros da organização impedem uma mulher de se suicidar – Teresa, interpretada pela atriz Maria João Abreu –, a trama acontece verdadeiramente quando um velho senhor recorre aos serviços desta “empresa” para evitar um desgosto da sua esposa.

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Ruy de Carvalho e Maria João Abreu fazem parte do elenco © André Marques/Observador

Ruy de Carvalho é Fernando Balboa, o veterano que durante 27 anos têm escrito dezenas de cartas à esposa – com a atriz Manuela Maria no papel — fazendo-se passar pelo neto. A mentira de Fernando corre bem ao longo de muito tempo, até que a chegada do descendente do Canadá, promete pôr tudo em risco. O neto de Balboa tornou-se um homem calculista, frio e um “crápula”, segundo o texto, logo poupar a esposa é o principal objetivo. Chegam notícias de que o navio onde o neto viajava terá naufragado, não deixando sobreviventes. Fernando Balboa apressa-se a arranjar uma solução: um casal que possa disfarçar-se, de seu neto e da esposa dele, e assim fintar as desconfianças e as tristezas da avó Eugénia.

Perante a fisionomia dos membros da organização, o velho senhor considera que o diretor Maurício e a mais recente aquisição da “Causa”, Teresa, são os mais indicados para desempenhar o papel. Com várias referências ao teatro, a uma hora e meia de duração de “As árvores morrem de pé” coloca o público perante a inocência da mentira e de uma vida encenada – cujo último patamar é restaurar a felicidade de uma família separada. “A vida entrou no teatro”, diz Maurício a Teresa. “Temos de nos preparar para a cena final”, acrescenta.

A trama desenvolve-se com alguns problemas a assombrar a “solução” arranjada por Fernando Balboa: as emoções afloram em todos os protagonistas, a verdade e a mentira entrelaçam-se no esquema e o neto morto “ressuscita” das cinzas – interpretado pelo ator Hugo Rendas.

As restantes personagens, nomeadamente os membros da organização e o staff da casa dos Balboa são interpretadas pelos atores Rosa Areia, Ricardo Castro, Paula Fonseca, João Duarte Costa, Patrícia Resende e João Sá Coelho. Até 27 de novembro, há algumas trocas alternadas nas personagens: com Eunice Muñoz como a avó, João D’Ávila como Fernando Balboa e Pedro Goulão como um dos elementos da organização. “Não poderia exigir que os atores trabalhassem durante tantas sessões de espetáculo”, explica o encenador Filipe La Féria.

“Eu não fujo do palco, eu tenho é respeito por ele”

Quase a celebrar os seus 90 anos, o ator Ruy de Carvalho afirma que o desafio é sempre encarnar uma personagem, seja ela qual for. “Com tantos anos de trabalho, já não temos medo, temos é receio de não fazer as coisas muito bem”, confessa ao Observador. A carreira com mais de 70 anos é uma receita infalível para acalmar os nervos quando se sobe ao palco: “Eu não fujo do palco, eu tenho é respeito por ele”.

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Ruy de Carvalho no seu camarim fala da peça e da sua experiência no teatro © André Marques/Observador

A experiência não significa que as fragilidades estejam colocadas de lado e um ator tem também os seus momentos de dúvida. Seja ele o Ruy de Carvalho ou não. “Eu também penso: ‘Será que sou capaz?’, ‘Porque é que escolhi esta profissão?’. Temos momentos em que o teatro absorve muito de nós”, afirma. Mas depois reconhece:

“Esta é a minha vida, é outra família que eu tenho: a minha família teatral. Ao fim de 74 anos de trabalho, tenho de conseguir encaixar-me em tantos espetáculos”.

Já a atriz Manuela Maria refere que “em cada peça e todos os dias se aprende uma coisa nova”. A interpretação de um texto de Alejandro Casona vem elevar as expectativas de “As árvores morrem de pé”, já que o dramaturgo era “um arquiteto do teatro”, esclarece. “Todos os textos nos apaixonam, as personagens são o que nos fascinam. É o disfarçar-nos: ‘não sou eu, sou esta’”.

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Manuela Maria é Eugénia, a avó que anseia pelo regresso do neto Maurício © André Marques/Observador

Não há regras pré-concebidas para o que vai resultar ou não. Antes da estreia, o elenco pode ter uma ideia do que vai resultar e onde as pessoas vão reagir mais, mas rapidamente percebem que não há fórmulas mágicas ou repetidas. “O público surpreende-nos. Reagem e acentuam momentos nesta peça, que nós não imaginávamos que iam reparar”, explica a atriz.

É nos espetadores que Filipe La Féria faz questão de aprimorar o sucesso do espetáculo. Vai para a frente do Teatro Politeama e vende programas autografados por si. “Sejam bem-vindos” e “bom espetáculo”, afirma repetidamente. Antes da sessão, explicava ao Observador que não pretende que a relação com o público seja feita à distância: “Temos de ter uma relação mais humana e afetiva com as pessoas”.

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Filipe La Féria trata de todos os pormenores da peça, desde o texto aos figurinos © André Marques/Observador

O teatro revela-se como uma arte que se eterniza no público por várias gerações e o encenador acredita que a peça “As árvores morrem de pé” vai ser um exemplo dessa eternidade. “Temos atores que são grandes nomes do teatro português e que estão no Politeama, firmes como as árvores”, afirma. O gosto pela obra de Alejandro Casona deu o mote para que Filipe La Féria adaptasse o texto para os dias de hoje e a certeza já é uma:

“Daqui a alguns anos, ninguém se vai lembrar dos políticos, mas vão-se lembrar da Eunice Muñoz”.

Tal como foi dito na peça por Maurício, o diretor da organização: “Se um pintor pintasse estes jacarandás, eles não morreriam”. No Teatro Politeama, até 27 de novembro, o elenco torna-se um grupo de jacarandás: estes não anunciam a chegada da primavera, são árvores que de pé, anunciam e respiram teatro.