O burkini é bem mais do que uma peça de roupa. Para uns, representa um símbolo de uma religião extremista, para outros é apenas uma escolha de vestuário. Na verdade, o burkini tem força suficiente para alimentar discussões inflamadas há semanas consecutivas. E esta sexta-feira o Conselho de Estado decidiu suspender a proibição da utilização do burkini. Mas, afinal, qual é a eficácia da proibição? Um burkini não é a mesma coisa que um hábito de freira?

Onde é que isto começou?

A República francesa tem já uma longa história de banir símbolos evocadores de religiões. Em 1989, Lionel Jospin, então ministro da Educação do Governo de François Mitterrand, decidiu proibir o chador (veste que cobre o corpo todo, com exceção do rosto), usado pelas raparigas muçulmanas, nas escolas públicas. Argumento usado: o Estado é laico, ou seja, não pertence nem está sujeito a nenhuma religião. Desta forma, as instituições públicas também não devem permitir a exibição de símbolos religiosos. As escolas públicas não são religiosas e, por isso, não têm de tolerar o chador, justificou-se na altura.

Em França, os muçulmanos são franceses. Nos espaços públicos da República francesa não podem usar o chador porque é um símbolo religioso e isso ofende os princípios identitários do país. Tem a ver com respeitar as leis do país onde se está. Todas as religiões são iguais e portanto nenhuma se deve manifestar de forma excessiva”, explica Carlos Gaspar, professor e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais

Em 2004, esta questão foi reforçada no país com a adoção de uma lei para proibir a adoção de “símbolos ostensivos” nas escolas públicas. E isso incluía, especificavam, o véu islâmico, a “kippa” judaica ou as cruzes cristãs.

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Uma proibição implementada apenas em nome de um princípio republicano que é constitutivo da identidade nacional francesa. Não por uma questão de segurança, aponta Carlos Gaspar. “Estas organizações terroristas islâmicas de hoje ainda não estavam ativas nos países ocidentais nessa altura. Na data da primeira proibição [1989] ainda nem tinha acontecido o 11 de setembro. A proibição foi em nome da laicidade e da secularidade do Estado, nada mais”, explica.

Mas hoje é diferente, salienta Carlos Gaspar. A proibição do burkini é defendida com base em “questões de segurança” e da não-exibição de um símbolo de um grupo extremista que tem aterrorizado a população. Mas a questão não é essa — é o rosto. A proibição de tapar a cara tem um argumento de segurança subjacente. Todos os rostos devem estar visíveis em público para salvaguardar determinadas situações. “Por exemplo, num assalto ou num roubo, pode ser preciso identificar rostos através de imagens de câmaras de vigilância no espaço público. Por isso, nenhuma senhora deve andar de cara tapada por uma questão de segurança”, refere Carlos Gaspar.

A proibição do burkini é uma reação extrema em nome de uma hiper inclusividade que claramente está a falhar. Devemo-nos apartar daquilo que criticamos. Isso é o que nos diferencia como sociedade aberta”, defende o professor universitário Filipe Pathé Duarte

No caso do burkini, o argumento securitário não se aplica porque a cara não está tapada. Ainda assim, o corpo coberto do cabelo aos pés incomoda muita gente. E um dos argumentos puxa a questão da laicização. “A praia é um espaço público e as pessoas têm direito de ir à praia sem estarem rodeadas por símbolos religiosos”, exemplifica o investigador.

Mas o burkini é ou não um símbolo de propaganda dos radicais islâmicos? “Não”, responde Filipe Pathé Duarte, autor do livro Jihadismo Global – Das Palavras aos Actos. “Uma coisa é o islamismo (ativismo político de retórica islâmica), outra é o Islão (religião). Justificado no primeiro, não devemos impedir a prática do segundo. Pomo-nos em causa. Esta laicidade está a tornar-se antirreligiosa e anti-islâmica”, sublinha. “A proibição do burkini poderá sim ser utilizada por radicais islâmicos como perigosa arma de arremesso”.

“Quem somos nós para dizer àquelas mulheres que elas estão mais bem vestidas de uma maneira ou de outra? Aquelas pessoas querem impor-nos a sua forma de mundo ou somos nós que queremos impor a nossa?”, questiona Mónica Ferro, professora universitária no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas de Lisboa.

Proibir o burkini é eficaz?

Mónica Ferro, ex-secretária de Estado da Defesa professora universitária no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas de Lisboa, considera que não. A opinião é partilhada por Carlos Gaspar e por Filipe Pathé Duarte. “Se nós as proibimos de estar na praia assim, elas vão deixar de ir à praia. E nós vamos deixar de interagir com elas, vamos deixar de as ver, vamos deixar de falar nelas. A proibição não vai libertar mulher nenhuma. Vai afastá-las com a ilusão de que a lei resultou“, defende Mónica Ferro.

Filipe Pathé Duarte considera a medida “uma clara falta de bom senso político” e relaciona-a com o medo decorrente dos recentes atentados terroristas. “É uma resposta precipitada perante o medo da violência jihadista. A Frente Nacional (extrema-direita francesa) adotou a laicidade como uma das suas bandeiras, em nome de uma homogeneidade étnica e comunitária de França”, aponta o professor universitário.

A burka lembra-nos o radicalismo islâmico e faz-nos sentir inseguros, porque não sabemos quem está debaixo daquela peça de tecido. Temos medo do que está ali”, diz Mónica Ferro, ex-secretária de Estado da Defesa.

Na base da proibição do uso do burkini até pode estar a plena integração de todas as religiões e, portanto, a não-exacerbação de nenhuma delas. Mas, para Carlos Gaspar, a lei não resulta. “Só acentua os problemas de diferenciação. Leis como esta isolam a comunidade muçulmana em vez de a integrar”, garante o investigador.

De facto, a comunidade não vai deixar de se comportar como os ensinamentos mandam. Vai deixar, sim, de o fazer em público. “As pessoas, quando são proibidas de usar símbolos que consideram adequados à sua religião, tendem a não obedecer às proibições e passam a fazê-lo apenas em privado. Porque se sentem marginalizadas, perseguidas e discriminadas, quando o objetivo devia ser integrar. Esta lei não é eficiente”, considera Carlos Gaspar.

Quem defende a proibição faz o jogo daqueles que querem separar a comunidade islâmica da sociedade francesa. Há uma vontade de mostrar que nós somos diferentes deles. Isto não é integração”, refere Carlos Gaspar.

E o hábito de uma freira, não é igual?

Quando uma mulher que dedica a vida à religião vai à praia, fá-lo vestida com o hábito que só deixa a cara descoberta. Então, porque é que nos indignamos com uma muçulmana de burkini e não com uma freira católica de hábito? Não é a mesma coisa? “Em conceito, é”, responde Felipe Pathé Duarte. “Mas há um lastro identitário e, por isso, simbólico, que justifica o hábito e não o burkini”. Porque a freira faz parte do nosso quotidiano e habituámo-nos a conviver com ela. “A freira, no nosso imaginário, não representa diferença”, remata.

Carlos Gaspar reforça a mesma ideia. “Há uma distinção. As freiras sempre andaram de hábito. Faz parte das coisas que nós esperamos ver. É uma tradição. Mas o burkini é uma novidade. Nunca ninguém tinha ouvido falar. Houve alguém que quis levar esta construção da identidade muçulmana para as praias. E a República francesa reagiu a essa novidade”, remata o professor.