Dela se costuma dizer que foi mulher e braço direito de Helmut Newton – editora, diretora de arte e curadora do fotógrafo durante quase 60 anos. Mas se o trabalho dele é há muito reconhecido e venerado, pela forma como retratou o erotismo feminino e alterou paradigmas na fotografia de moda, já a carreira de Alice Springs tem permanecido relativamente esquecida.

A primeira exposição em nome próprio é de 1978, em Amesterdão, mas a primeira retrospetiva a que teve direito, ou com a qual concordou, data de 2010, em Berlim. Portugal, por exemplo, nunca a viu a solo, mesmo se a fotógrafa, essencialmente retratista, trabalha desde 1970.

Reza a lenda que naquele ano, com o marido atacado por uma gripe severa e com um trabalho em mãos, Alice Springs decide pegar na máquina e fazer ela as fotografias. Eram para um anúncio da marca de cigarros Gitanes. Assim iniciou a carreira.

Parte do seu trabalho pode agora ser visto na exposição Alice Springs: The MEP Show, que abriu a 2 de junho e se mantém até 20 de novembro na Fundação Helmut Newton, em Berlim. Ao mesmo tempo, a Taschen publicou um livro homónimo que funciona como catálogo da exibição berlinense. A editora autoriza a imprensa a publicar fotos das páginas do livro, mas não cópias das fotos originais.

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Diferentes etapas

O volume, tal como a exposição, está dividido em três. Um primeiro conjunto de retratos a preto e branco e a cores, sem título. O mais antigo é de 1972 e o mais recente, de 2009. O marido aparece em muitas das fotos, sozinho ou na companhia de celebridades como o fotógrafo Richard Avedon, o cantor lírico Luciano Pavarotti ou o astronauta Buzz Aldrin. O fotógrafo Sebastião Salgado, a atriz Audrey Hepburn ou o escritor Graham Greene são outros dos temas.

A segunda parte intitula-se “Mulheres Famosas de Nova Iorque”, com sete retratos de Nan Kempner, Nancy Kissinger e Judy Peabody, entre outras. A terceira parte, “Melrose Avenue L A, 1980s”, apresenta registos a preto e branco da cena punk e hip-hop, com jovens no meio da rua a posar como numa revista de moda.

Muitas das imagens nunca antes tinham sido exibidas, sendo disso exemplo o autorretrato que Alice Springs tirou em Nova Iorque, há 16 anos, e que faz capa do livro.

“The Paris MEP Show”, de Alice Springs; ed. Taschen, 2016; 112 páginas; 29,99€

“The Paris MEP Show”, de Alice Springs; ed. Taschen, 2016; 112 páginas; 39,99€

Alice Springs (nome de cidade australiana) é o pseudónimo de June Browne, nascida em Melbourne em 1923. Começa por perseguir uma carreira como atriz, aí com o nome June Brunell, até que em 1947 conhece o futuro marido, que abrira um estúdio na Austrália. Helmut Neustädter, filho de judeus, fugira de Berlim em 1920, trabalhara no mundo da prostituição em Singapura e acabara deportado para a Austrália, onde altera de apelido.

June entra no estúdio como modelo e sai como noiva. Casam-se no ano seguinte, vivem temporadas em Londres e Paris, June ainda como atriz, regressam ao país dela e finalmente fixam-se na capital francesa a partir de 1961.

Retratos “imediatos e naturais”

A exposição e o livro resultam de uma antológica de Alice Springs realizada em 2015, na Maison Européenne de la Photographie – MEP, no bairro parisiense de Marais, e que agora transitou para a Alemanha.

São uma visão parcelar da fotógrafa, que também trabalhou para marcas, como Jean-Louis David, e revistas de moda: Vanity Fair, Elle, Vogue, Stern, Interview, entre muitas outras. Essa componente, e a dos muitos nus que também assinou, tiveram direito a outra mostra, em 2012.

Os retratos de Alice Springs são “imediatos, sensíveis e surpreendentemente naturais”, lê-se no livro. Helmut Newton dizia:

“Não conheço ninguém que faça retratos como ela. Há muitos bons retratistas hoje, com trabalho relevante, mas o dela tem qualidades únicas. São fotos tiradas com absoluta candura. Nas raras oportunidades que tive de a ver trabalhar, sempre me espantou a ausência de manipulação, patente na forma como se apagava no cenário e tornava invisível.”

Mulher atraente e inflexível, como a descrevia há uma década o jornal The Guardian, Alice Springs raramente seguiu o estilo do marido. No mesmo artigo defendeu que é mais fácil um fotógrafo captar a essência de uma mulher num retrato, e uma fotógrafa alcançar o interior de um homem.

O olhar, disse, é o mais importante na relação com os temas. “Nunca veremos o olhar profundo das pessoas nas imagens de Helmut. Vemos apenas os olhos. Ele não tinha interesse nas pessoas, dizia que não se interessava pela alma. Mas eu tinha e tentava roubá-la. Em muitos casos, consegui.”