O pequeno mundo da indústria dos videojogos ocidentais tende a ocupar um espaço mediático que corresponde cada vez menos à realidade financeira do setor. E3, Gamescom ou Tokyo Game Show continuam a ser as nossas referências porque simbolizam a faceta cultural que nos corresponde. Os jogos, tal como os valorizamos.

A Chinajoy é a maior feira de videojogos da China. Decorre anualmente em Xangai no final de julho, altura em que a megalópole do Império do meio vive os seus dias mais quentes. Com cerca de quatro pavilhões dedicados aos profissionais e dez ao público em geral, as suas dimensões rivalizam com as maiores feiras internacionais, mas é praticamente uma incógnita no Ocidente.

Numa altura em que a China estará prestes a tomar de assalto o primeiro lugar no mercado de videojogos a nível mundial, a realidade do jogador chinês continua a ser ignorada por grande parte da imprensa especializada. Quisemos ir para além das curiosidades pejorativas sobre o assunto para desvendar a essência deste novo ator mundial e compreender aquilo que poderá vir a ser o futuro da indústria.

Um mercado mobile e “gratuito”

O processo evolutivo dos videojogos não é linear e a China é a prova disso mesmo. Enquanto grande parte do mercado Ocidental cresceu de consola em consola, a China, devido a peculiaridades internas tanto políticas como económicas, nunca chegou a acompanhar esse processo. Nos anos 90 as incertezas sobre as questões de direitos de autor e a relativa fraqueza da classe média chinesa tornaram o mercado pouco atrativo para a indústria. As cópias de consolas proliferavam e a pirataria era o principal meio de consumo.

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Em 2000 o governo chinês fecha definitivamente o mercado ao banir as consolas. O seu principal argumento relacionava-se com o receio de que as mesmas corrompiam o espírito da juventude nacional. É somente quinze anos mais tarde que o governo volta atrás nessa decisão mas os efeitos são praticamente irreparáveis: a China desenvolveu, dentro das suas limitações, uma cultura de consumo muito própria. Assenta numa experiência aparentemente gratuita e acessível através de objetos que não se limitam à função de plataforma de jogos como o computador ou a tendência, agora maioritária, do smartphone.

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A sociedade chinesa, assente numa lógica de pragmatismo e produtividade, viciou-se nos jogos porque estes representavam uma experiência paralela à sua ferramenta de trabalho. Já no princípio dos 2000, não era raro ver comerciantes ocuparem as suas horas vagas com MMORPGs, ou jovens estudantes a escaparem ao olhar parental para trocar as ferramentas pedagógicas do computador familiar por uma sessão de jogo QQ – o equivalente chinês do MSN, propriedade da marca que viria a tornar-se na maior empresa de videojogos à escala mundial: a Tencent.

Embora o PC continue a ser o espaço prioritário dos jogadores mais competitivos devido à pungência da galáxia internacional dos eSports, os jogos na China dos dias de hoje consomem-se no smartphone à semelhança do que acontece com o nosso público casual. Enquanto preenchemos as horas vagas com sessões de Candy Crush, os chineses de todas as idades fazem o mesmo mas com o equivalente chinês Anipop (Kaixin Xiaoxiao Le).

Estas experiências aparentemente gratuitas conseguiram render cerca de 22 biliões de dólares em 2015. A Tencent é o principal ator deste mercado, detendo cerca de 45% dos rendimentos Android através de jogos como Happy Lord QQ, um jogo de cartas, ou o seu mais recente MOBA, King of Glory, que ocupa o primeiro lugar de vendas desde o seu lançamento.

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A Chinajoy reflete essa realidade e os computadores e consolas tornam-se cada vez mais raros nas áreas de demonstração, substituídos por smartphones e tablets. Os jogos, devido à sua natureza, possuem um ciclo de vida alargado e marcam presença anualmente, tentando chamar a atenção dos visitantes através de melhorias ou métodos considerados arcaicos noutras partes do mundo.

Modelos e jogos

Enquanto as booth babes inspiradas nas feiras do setor automóvel foram gradualmente desaparecendo no Ocidente, a estratégia dos atores do mercado chinês passa essencialmente por atrair o jovem consumidor através da libido. A proporção de jogadoras chinesas é um dado ainda incerto mas não pode ser objetivamente desprezado. Enquanto os palcos da Chinajoy fazem desfilar centenas de modelos, não faltam mulheres na assistência. Talvez resignadas por este modelo generalizado, o maior opositor à prática acaba por ser o Governo, que tem controlado os excessos através de diretrizes que passam por proibir os decotes, umbigos visíveis e, mais insólito, o consumo de cenouras e bananas pelas suas alegadas ambiguidades fálicas.

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Essa realidade tem vindo a ter consequências para além da feira. A ferramenta de streaming YingKe, uma mistura de Twitch e Snapchat, permite a muitas destas modelos entrarem no setor particularmente lucrativo das sessões de jogo em direto ou através de conversas online com dezenas de milhares de fãs que podem, em tempo real, enviar “donativos” através da aplicação.

O efeito desta nova tendência está à vista. Um pouco por todo lado, as modelos alternam sessões fotográficas com os visitantes com momentos de interação em direto com seguidores online.

Os canais de eSports

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Consciente das potencialidades do desporto virtual, a Chinajoy deste ano está repleta de palcos dedicados à promoção de canais especializados. O principal ator do mercado, DouYu, enfrenta uma concorrência cada vez mais numerosa e vale tudo para conseguir atrair novas audiências. Nessa matéria, as personalidades da Internet são trunfos essenciais. Vinculados a contratos de exclusividade, as marcas procuram as vedetas do YingKe mais atraentes para conquistar novos espectadores.

Junto aos palcos dedicados ao tema, encontramos algumas modelos do YingKe expostas em cabines transparentes. Absorvidas numa sessão de League of Legends ou Overwatch, estas mulheres são figuras insólitas de um zoológico humano. Numa altura em que as vedetas da internet portuguesa dão os seus primeiros passos na profissionalização, a opção chinesa parece ter alcançado um pragmatismo desconcertante, capaz de explorar os fascínios mais obscuros dos espectadores.

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O papel do estrangeiro

Tanto League of Legends como Overwatch são propriedades conhecidas na China. A distribuição de jogos estrangeiros efetua-se principalmente através de joint ventures que tiveram um papel fundamental na criação de grandes empresas nacionais. A Netease, por exemplo, através da sua parceria com a Blizzard, conseguiu chegar ao estatuto de gigante do mercado e continua a ter a primazia na localização, tendo adquirido um dos jogos mais lucrativos do mercado chinês da atualidade: Minecraft.

Inspiradas por esse sucesso, as empresas procuram cada vez mais estas parcerias. É o caso da Shandagames, que apresenta este ano Fallout Shelter e Dragon Quest Online.

A verdade é que estes jogos associados a franquias famosas, não correspondem necessariamente às expectativas do jogador local. Para superar esse problema, os detentores das propriedades mais conceituadas acabam por conceder o direito de desenvolvimento a empresas chinesas. O objetivo é tentar capitalizar com a marca sem grandes custos internos e assegurar que o jogo possa ter um sucesso à altura. Para além do mais, essa opção assegura os direitos de autor no mercado, pois ao ter uma empresa chinesa responsável por uma franquia torna-se muito mais fácil defende-la no território.

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É o caso da parceria entre a Square Enix e a Perfect World. A empresa de Pequim assegurou os direitos de Final Fantasy Agito e está prestes a lançar um jogo desenvolvido na China para smartphones, tablets e PC: Final Fantasy Type-0 Online. A Square Enix, bastante satisfeita com o resultado, já informou que pretende ir para atém da China e lançar o jogo no Japão, Europa e Estados Unidos.

Outro exemplo é o caso da Bandai Namco que já criou uma sucursal na China através de uma parceria com a Tencent. Tendo os direitos de emblemas da animação japonesa como Dragon Ball, Naruto e One Piece, séries particularmente conhecidas na China, a empresa está prestes a lançar adaptações mobile desenvolvidas especificamente para o mercado. As probabilidades de ver estes jogos fora do território são bastante reduzidas mas os casos são cada vez mais numerosos.

No caso das consolas, a Microsoft e a Sony dispõem de dois palcos frente a frente. Dificilmente se consegue uma metáfora visual mais expressiva. A Nintendo, por sua vez, continua ausente sendo que o Pokémon GO é neste momento um dos jogos mais aguardados no território. A Niantic, responsável pelo jogo fenómeno deste ano, não conseguiu penetrar o mercado pois a utilização da rede GPS por parte de uma empresa estrangeira seria impensável num território tão fechado como o chinês. O Governo tem sido absolutamente intransigente nessa matéria e a única esperança reside nos rumores de que a Tencent ou a Baidu, empresas locais, poderão estar prestes a assinar uma parceria para que o Pokemon GO possa utilizar o seu serviço GPS no território.

Como já referimos aqui, as consolas não são o alvo preferencial dos chineses. Para superar o problema a Microsoft, que entrou oficialmente no mercado chinês em 2015, procura atrair o consumidor através de ferramentas alternativas. Para tal aposta no seu Kinect e o Fruit Ninja, um jogo já conhecido dos utilizadores de smartphones e que pode, conjuntamente com o periférico da Microsoft, ser desfrutado sem recurso ao comando, uma ferramenta caída em desuso na China.

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Em termos de software, a Microsoft abre o seu catalogo aos Indies chineses. Destacamos o Attack of Heroes, um jogo já anunciado para Steam e que concentra todas as especificidades do gosto local por scrollers estratégicos, com temáticas orientais reminiscentes da época dos “Três Reinos” (popularizada no Ocidente pela série Dynasty Warriors).

No caso da Sony, para além do reconhecimento da marca Final Fantasy no território, a aposta reside essencialmente no Playstation VR, o novo dispositivo de realidade virtual da Sony.

A nova grande aposta do mercado: a Realidade Virtual

Apesar de não existirem números oficiais, estima-se que existam cerca de 200 estúdios chineses dedicados aos videojogos. Este número significativo é proporcional à grande procura do investimento chinês. Numa altura de grande dinamismo económico, os investidores estão famintos por projetos ligados à área, capazes de proporcionar lucros significativos a curto prazo. Uma das principais dificuldades num contexto destes é alcançar visibilidade no meio de tantos competidores. Quando uma empresa não possui uma franquia capaz de proporcionar essa visibilidade, os jogos perdem-se invariavelmente no mar de produções anuais.

Vendo que a sua nova aposta não alcança o sucesso desejado, os investidores retraem-se rapidamente e os projetos encerram com facilidade. Com o monopólio de gigantes como a Tencent, os atores mais pequenos procuram novas vias de aceder ao mercado – algo que o VR permite. É sem surpresa que vemos nesta edição de 2016 uma verdadeira corrida a este novo Eldorado.

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São cerca de três os pavilhões dedicados à realidade virtual. Encontra-se de tudo um pouco: criadores de jogos VR, novos hardwares e projetos de zonas de lazer VR.

Enquanto o Ocidente está no processo de assimilar os Samsung Gear VR, HTC Vive, Oculus Rifts e Playstation VR, a China procura criar os seus próprios dispositivos. É o caso do Pico NEO, uns óculos de realidade virtual cujo hardware se encontra no comando, o HYPEREAL que aparenta ser uma cópia do HTC Vive, o 3Glass que promete uma resolução de 2k e o AntVR que vem acompanhado de uma série de acessórios e já teve uma passagem pelo Kickstarter. Com preços a oscilarem entre os 400 e 700 euros, estes dispositivos procuram rivalizar em qualidade com os líderes autoproclamados da tecnologia.

Conscientes do valor elevado destes dispositivos e dos constrangimentos de espaço, muitas empresas procuram ir para além do consumo caseiro e propõem a criação de zonas de diversão dedicadas ao tema. O objetivo passa por alargar as possibilidades dos dispositivos através de acessórios volumosos. Usar o VR conjuntamente com uma réplica de metralhadora, bicicleta, um barco de remo ou até uma cadeira que pode fazer girar o utilizador 360 graus… Todas as extravagâncias foram ponderadas para reproduzir no espaço físico a experiência virtual. A mais promissora da feira foi sem dúvida a do projeto VR Together e o seu MiliVR. A ideia passa por colocar vários jogadores na mesma experiência de realidade virtual através de uma combinação entre óculos VR e “motion capture”. O resultado é impressionante e parece ser o próximo passo (natural) desta tecnologia na procura por uma maior imersão.

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Num contexto em que a China ainda procura trazer um contributo à altura do seu estatuto no mercado global dos videojogos, a realidade virtual surge como oportunidade para se afirmar como pioneira e líder potencial desta nova tecnologia.

Matthieu Rego, Rubber Chicken