Aos 77 anos, o realizador italiano Ruggero Deodato tem mais de 30 filmes no currículo desde a década de 60, e foi assistente de nomes como Roberto Rossellini, Joseph Losey, Mauro Bolognini ou Claude Autant-Lara. Mas Deodato é mundialmente conhecido por ter feito em 1980 “Holocausto Canibal”, que se transformou num dos filmes mais perturbantes, proibidos (em mais de 50 países), censurados, controversos e execrados da história do cinema de terror, e do próprio cinema. É um verdadeiro “filme maldito”, sobre uma equipa de filmagens americana, liderada por um antropólogo, que ruma à selva amazónica em busca de uma outra equipa que desapareceu na região, onde procurava tribos canibais. Encontram apenas as imagens filmadas pela primeira equipa, as quais revelam horrores inomináveis, em cuja origem estiveram os próprios documentaristas, na sua busca de uma história sensacionalmente chocante.

[“Trailer” de “Holocausto Canibal”]

Devido às suas imagens invulgarmente violentas, gráficas e explícitas, “Holocausto Canibal” foi banido em Itália logo após a estreia e Ruggero Deodato preso por “obscenidade”. Iria depois a ir a tribunal, acusado de ter morto alguns dos atores e “extras” nativos participantes no filme (rodado na floresta amazónica colombiana, com intérpretes americanos, italianos e tribos indígenas locais), mas o julgamento foi anulado após se provar que era tudo mentira e os participantes que teriam “morrido” na rodagem comparecerem no tribunal. (O realizador arrepender-se-ia posteriormente de ter morto alguns animais durante as filmagens, que foram comidos pelos indígenas, outra das razões para a indignação em redor da fita).

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Apesar de ainda estar banido nalguns países (consta da famosa lista dos “video nasties” na Grã-Bretanha, onde só se estreou em 2001, e ainda com cortes), o filme acabou por ganhar estatuto de culto – não antes sem ter dado origem a um subgénero denominado de “terror canibal” – e é defendido e elogiado por realizadores como Quentin Tarantino, Oliver Stone ou Eli Roth. Em Portugal, estreou-se no Politeama, sem cortes, e acompanhado por uma campanha de publicidade que o apresentava como sendo um filme “real”, ficando várias semanas em cartaz. Hoje, “Holocausto Canibal” é um favorito dos festivais de cinema fantástico em todo o mundo. Ruggero Deodato trouxe-o ao MOTELX 2016, que termina hoje, e do qual é o convidado especial, e conversou com o Observador.

[Uma sequência do filme]

Quando estava a rodar “Holocausto Canibal”, alguma vez pensou que o filme se tornaria tão controverso, e que lhe causaria tantos problemas?

Não. Nem que me tornaria conhecido por causa dele durante os 36 anos seguintes. Eu fiz o filme porque nessa altura, em Itália, estava muito zangado com o que via na televisão. Os noticiários mostravam coisas terríveis, violentíssimas, à hora do jantar, atentados, crimes, e o meu filho dizia-me: “Papá, desliga a televisão!” E eu perguntava-me: ‘Por que diabo é que os jornalistas podem mostrar aquelas coisas todas e eu, quando faço um filme, sou censurado?’ Decidi então fazer um filme sobre jornalistas que vão à procura de uma história nas selvas amazónicas, e quando não a encontram, fabricam-na. Além disso, lembrei-me do que fazia o Jacopetti nos filmes “Mundo Cão”, onde encenava situações, simulava a realidade. Lembro-me de uma execução em África que ele fabricou porque queria aproveitar um pôr-do-sol muito bonito. O “Holocausto Canibal” é uma acusação aos jornalistas. Mas só 30 anos depois as pessoas perceberam isso. O filme é um ataque aos media da altura, não é um desfile gratuito de atrocidades.

“Holocausto Canibal” é também o produto de uma época muito violenta. Nessa altura, finais dos anos 70, início da década de 80, havia movimentos terroristas em atividade na Europa: as Brigadas Vermelhas em Itália, a Fracção do Exército Vermelho na Alemanha, a ETA em Espanha, até aqui em Portugal havia violência terrorista.

Em Itália, mostravam tudo isso explicitamente na televisão, a toda a hora. Hoje, vemos aquelas imagens dos reféns dos terroristas islâmicos a serem degolados e decapitados. Eu muitas vezes pergunto nos festivais aos espectadores de “Holocausto Canibal” o que é que acham que é mais atroz, se ver pessoas reais a ser degoladas e decapitadas, se o meu filme. E todas respondem o mesmo: “É “Holocausto Canibal”. Parece que a ficção é mais impressionante, mais forte, do que a realidade. As pessoas habituaram-se a ver, nos telejornais, homens, crianças e mulheres a serem mortas violentamente. Mas se veem um animal a ser morto, choram.

O filme incorpora uma crítica à fabricação sensacionalista de acontecimentos, e mostra que os ditos “civilizados” também podiam cometer selvajarias. Mas na altura pouca gente reparou nisso, dado o escândalo imediato que causou, não foi?

Sim. Quando o filme se estreou, escreveram que eu era fascista e racista, coisas dessas. O tempo passou, e depois, mais tarde, os jornais que me tinham insultado disseram, com todo o destaque, que nessa época eu havia sido o único realizador a atacar essa realidade da falta de integridade dos media. Os mesmos jornais de esquerda! E agora que o filme passou também em Inglaterra, tornou-se de culto. Quando “Holocausto Canibal” foi projetado em Londres, em Manchester, em Leeds, os espectadores eram diferentes dos habituais. O público do filme nos EUA costuma ter tatuagens, “piercings”, essas coisas. Mas em Inglaterra, eram pessoas com ar muito sério, professores universitários… E numa lista feita por uma revista especializada, compilando os 50 filmes mais chocantes da história do cinema, aparece em segundo lugar. Atrás do “Saló”, do Pasolini, e á frente de “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick. Estou em boa companhia.

[Um comentário crítico sobre o filme]

É verdade que Sergio Leone, depois de ver “Holocausto Canibal”, disse que gostava muito do filme, mas que ele lhe ia causar imensos problemas?

É, sim. Ele era meu amigo e foi a primeira pessoa a ver “Holocausto Canibal”, numa projeção que fiz em casa dele. No fim, o Sergio disse-me: “A primeira parte do filme é normal. Mas a segunda é uma obra-prima. Só que vais ter muitos problemas em todo o mundo por causa dele.” Foi profético!

Nunca se arrependeu de ter feito “Holocausto Canibal”?

Não.

Mesmo com todos os problemas que o filme lhe trouxe, durante tanto tempo?

Não. Mas tive medo durante algum tempo após a estreia do filme. Porque telefonavam a ameaçar-me, faziam chamadas anónimas, e sentia que era seguido. E depois fui à Colômbia trabalhar e tive lá vários problemas. De modo que mudei de estilo nos filmes, fiz muitos anúncios e trabalhei em televisão.

Já tinha realizado muitos filmes antes de “Holocausto Canibal”. E antes, trabalhou como assistente de Roberto Rossellini, entre outros realizadores, não foi? Joseph Losey, por exemplo.

O meu mestre foi o Rossellini. Mas também trabalhei, entre outros, com o Losey, o Mauro Bolognini, o Claude Autant-Lara ou o Sergio Corbucci.

O cinema de terror, é cada vez mais explícito, em grande parte devido aos progressos dos efeitos especiais, e vemos coisas mil vezes mais horríveis dos que a que mostrou em “Holocausto Canibal”. O que acha disso?

É verdade, e isso é muito impressionante. Mas penso que, mesmo assim, “Holocausto Canibal” continua a ter mais força do que todos esses filmes.

[O genérico do filme]

Na altura, o filme gerou uma série de imitações, deu origem a um subgénero, aparecendo títulos como “Comidos Vivos!”, de Umberto Lenzi.

Que são horríveis! Mesmo recentemente, o Eli Roth- que é meu amigo – fez “Inferno Canibal”, uma imitação/homenagem de um filme meu, “O Último Mundo Canibal”, que rodei antes de “Holocausto Canibal”. As imitações não me desagradam, mas quando metem zombies ou monstros, isso detesto.

Diz-se agora que “Holocausto Canibal” foi o precursor de filmes como “O Projecto Blair Witch”, por causa do recurso narrativo a imagens supostamente reais, a chamada “found footage”. Qual é a sua opinião?

Não gostei de “O Projecto Blair Witch”. Mas os realizadores merecem um prémio, porque em Itália, quando da estreia, os media iam à saída dos cinemas perguntar o que é que as pessoas tinham achado, e elas respondiam: “O verdadeiro filme deste género foi feito há 20 anos pelo Ruggero Deodato.” Foi nessa altura que “Holocausto Canibal” “ressuscitou”. Começaram a chover pedidos de entrevistas de todo o mundo, e o filme começou aí a sua segunda vida. Hoje, é de culto.

Realizou vários filmes de terror, mas também de muitos outros géneros: policiais, ação e aventura, comédias, etc. Tem um género favorito?

Na verdade, eu sou um técnico, um realizador profissional. Fiz imensos filmes publicitários, por exemplo, e também muita televisão. Gosto de trabalhar com as câmaras, seja a fazer um anúncio de mobiliário, seja um filme policial como “Os Exterminadores”, o meu favorito, de que o Quentin Tarantino também gosta muito. E tenho posto cada vez mais humor nos meus filmes, porque alivia a tensão dos espectadores. Também me preocupo com a música. Nos EUA, há pessoas que se vão casar ao som da música de “Holocausto Canibal”.

[Início de “Os Exterminadores”, um dos policiais do realizador]

O que pensa do cinema italiano contemporâneo?

Têm-se feito bastantes comédias. Nada más, algumas. Mas não como as do tempo do Dino Risi, do Luigi Comencini, do Mario Monicelli. E tendem a imitar as comédias francesas. Há os filmes sobre a Mafia. E temos também bastantes bons atores e atrizes. Há menos “estrelas” que antigamente, mas temos uma quantidade de bons intérpretes, de primeiro plano e secundários. Isso é importante.

E quanto ao cinema fantástico e de terror italiano, que teve uma considerável expressão nos anos 60, 70 e 80, mesmo que a qualidade fosse desigual?

O Dario Argento foi o último grande realizador italiano de filmes de terror, mas achei os últimos filmes dele uma desilusão. E o Michele Soavi, que foi meu assistente e começou no terror, preferiu virar-se para a televisão e fazer telefilmes e séries. Não tenho nada contra isso, eu também faço televisão dessa, romanesca, realista, policiais. Mas em Itália, o terror, tal como os restantes géneros cinematográficos, está morto. Acabou.