Artigo publicado inicialmente em setembro de 2016. 

O mundo de Vidiadhar Surajprasad é transfronteiriço. Nascido em 1932, em Trinidade, descendente de indianos, foi viver para Inglaterra no ano de 1950, vindo a frequentar a universidade em Oxford e a colaborar com a BBC. Começou por se sentir um estranho no país mas hoje admite que encontra aí algum conforto. Nos seus livros a confluência de geografias é permanente, criando uma complexidade de vivências e trilhos identitários. É como se estivesse sempre à procura de um lugar que possa dizer seu, sem nunca o conseguir encontrar.

Em A Curva do Rio, o protagonista, Salim, filho de comerciantes resolve ir fundar uma loja num país do interior de África e descreve assim o lugar de onde vem: “A costa não era verdadeiramente africana, ela era simultaneamente árabe, indiana, persa e portuguesa, e nós, que vivíamos na costa, éramos na realidade gente do Oceano Índico”. As suas múltiplas heranças culturais tornaram mais difícil aquilo que considera ser uma parte decisiva trabalho de quem escreve: o foco, a escolha dos temas sobre os quais faz mesmo sentido escrever. Encontrou uma voz em Miguel Street (1959), passado em Port of Spain, na sua terra-natal.

a-curva-do-rio-foto

Naipaul começou a querer ser escritor por volta dos dez anos, inspirado pelo pai, jornalista e autor de pequenas histórias – e figura que inspirou um dos seus romances mais distintivos, Uma Casa para Mr. Biswas. Sabe que não há literatura, digna desse nome, sem fenda, sem um um conflito com os lugares, com as pessoas e com o próprio escritor, ainda que tudo possa ter uma espécie de uma redenção, mesmo que ferida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Identificando-se com a vocação de viajante e o olhar agudo de Joseph Conrad e procurando uma prosa precisa, sem tentar o esforço de parecer virtuosa, a arte literária de Naipaul, feita de desassombro, de humor e de impertinência (correndo o perigo da gratuitidade), passa por géneros como o romance, o ensaio e a reportagem e começa por se distanciar do testamento cultural que a sua família enformada pelo hinduísmo lhe deixou. É reveladora de um perspectiva sem romantismo sobre as sociedades — indianas, indonésias, africanas — que retrata a seu modo e com as quais conviveu nas suas viagens e ainda de uma aversão radical a qualquer tipo de religiosidade ou espiritualidade extremas. Uma das suas imagens de marca são as suas generalizações, que motivam ou acusações de racismo ou riso. “Nunca quis ser porta-voz de ninguém”, afirma em sua defesa, destacando o carácter individual do seu ponto de vista e do seu trabalho.

biswas

Há um conselho sensato que diz que não se deve conhecer de perto os escritores que se admira. Naipaul é, para muitos, um deles, sendo conhecido, através de relatos biográficos, pela sua misoginia e crueldade, reveladas na forma como assumiu ter lidado com as mulheres com quem teve relacionamentos longos. E também pela sua irascibilidade, pela sua antipatia e pela sua vocação para o auto-elogio. Entrevistá-lo é muitas vezes um exercício penoso, que obra ao entrevistador a reformular as perguntas a pedido do entrevistado. Assume que não sabe propagandear os seus livros e diz que nada lhe interessam as opiniões alheias sobre o que escreve. Exagera, mais uma vez. O americano Paul Terroux emocionou-o quando, num festival literário em 2011, num movimento de reaproximação, depois de anos de guerra verbal, o elevou e comparou a Charles Dickens.

Em Portugal, depois de ser editado pela Dom Quixote, o Prémio Nobel de 2001 tem sido publicado pela Quetzal, com títulos como Num Estado Livre, O Enigma da Chegada e A Curva do Rio. Dada a escolha dos mapas que percorre, não são raras as referências na sua obra aos portugueses enquanto povo colonizador. Uma Vida pela Metade passa-se em parte num país africano colonizado por Portugal, entre famílias com apelidos como Correia e Noronha. Agora está em Óbidos para conversar com o jornalista e crítico José Mário Silva.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.