A galope até Tróia, terra de encontro de criativos por estes dias, desvenda-se um dos universos mais desejados. O encontro Trojan Horse Was a Unicorn promove conversas e motivações, o-que-tem-de-ser-tem-muita-força, gente com anos de bastidores nos maiores estúdios cinematográficos ou veteranos na produção de jogos de vídeo. Shelly Wan, “color artist” da Pixar há seis anos, nasceu na China, onde já desenhava sob o imaginário ocidental. Mudou-se para Los Angeles e é, por exemplo, uma das artistas responsável pelo visual de produções como “Monstros: A Universidade”, “À Procura de Dory” ou “Divertida Mente”.

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Quando é que começou este fascínio pelo desenho e pela animação?
Como tantas outras pessoas neste meio comecei bastante cedo. A minha primeira memória é a de ver o cartoon do Mickey Mouse, e, provavelmente, o desenho apareceu logo a seguir.

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Recorda-se que idade tinha?
Aquela memória de ver o Mickey Mouse na televisão aconteceu com um ano e meio, mais coisa menos coisa, julgo que o desenho surgiu um bocado mais tarde, pelos três anos.

Quais eram os seus heróis preferidos à época?
Bom, cresci na China, tínhamos uma grande variedade de animação. Lembro-me de ver bastantes produções soviéticas, tal como americanas, claro. O Mickey Mouse, o Pato Donald, gostava particularmente de uma série de animação checa que tinha uma marmota como personagem principal, não sei se conheces esta…

Não me parece.
Desculpa, é demasiado aleatório…

Portanto podemos dizer que o Mickey foi a primeira coisa que pôs num papel.
Sim, exato.

Como é que era esse Mickey, para uma criança de três anos?
Saiu bem, tinha pinta. E recordo-me que ainda gostava mais de desenhar o Donald, era incrível, não sei explicar bem a razão. Ah, e o Dumbo, adorava o Dumbo e aquelas orelhas.

Uma coisa é adorar-se este universo, outra é trabalhar-se nele. Quando se apercebeu que a animação podia ser o seu caminho?
Sem dúvida. Quando me mudei para os Estados Unidos fui para Los Angeles, a capital mundial de animação, muitos dos meus professores trabalhavam para a Disney e para a DreamWorks, aí o imaginário começou a voar, mas nada de muito concreto.

Mas estudou artes de uma forma geral, certo?
Sim, claro, estudei artes no secundário, portanto desenhava bastante e pintava, as bases, a tradição. Quando fui para o ensino superior não mudou muito, eram ainda os cânones, retratos e paisagens… só talvez depois de me licenciar é que percebi o que podia ser, o que coincidiu com o boom do “entertainment design”, aliás, muitas das escolas de 3D só abriram já eu tinha saído da universidade.

Daí até ir parar à Pixar, foi uma grande distância?
Enquanto estava na universidade o meu gosto pelo trabalho da Pixar só aumentou, já gostava de animação e por isso decidi tentar a minha sorte. Candidatei-me três vezes e nunca fui aceite, mas não parei de tentar. Foi curioso, porque quando finalmente me aceitaram a senhora dos recursos humanos disse: “Já vi o seu trabalho noutros anos”. Foi um episódio com piada. Mas foi graças ao meu diretor de arte Dice Tsutsumi que comecei a meter as mãos na massa, foi ele que me chamou para os “Monstros: A Universidade”. Nunca tinha trabalhado comigo mas achou que seria capaz, foi uma grande demonstração de confiança.

Como é fazer-se parte de uma estrutura como a Pixar? Porque do lado de cá só vemos o resultado final e aí é tudo fantasia.
É um bocadinho dos dois. É saber que fazes parte de algo fantástico, que estás a fazer um filme que várias gerações vão gostar, e que pode ficar para a história, algo com importância. Isso é motivador e bonito. Mas, como quase todos os trabalhos, trabalhar na Pixar também é o trabalho quotidiano, fazer o que tem de ser feito.

A sua biografia diz que a Shelly é “color artist”. O que significa esse nome, quais as suas funções?
Não é muito fácil de explicar mas vamos tentar. Quando se pensa na Pixar pensa-se, talvez, que todos os que aqui estão são animadores, mas antes da animação poder acontecer há uma personagem, e essa personagem move-se. Só que antes de ser feita, e de ter textura, tem que ser desenhada e sombreada, tem que ganhar cor, aspeto, esse é o meu trabalho, o mesmo se aplica para o “set”.

O que é que alguém com este género de tarefas tem de ter para ser bom naquilo que faz?
Julgo que é necessário compreender profundamente a linguagem do filme em questão. É uma lógica diferente, é sequencial, não tanto como tornar uma série de imagens individuais num todo, bonito. É quase centrarmo-nos naquilo que é menos superficial.

Fez, por exemplo, “Monstros: A Universidade” e “Inside Out”. De filme para filme, o trabalho pode mudar substancialmente?
Depende da profundidade com que se está no projeto, quem são os seus superiores. Cada filme tem um estilo próprio, uma identidade, um “production designer” diferente, alguém que lidera o departamento de arte, onde estou. Cada um tem uma fatia na forma como estes responsáveis pensam o filme. Por exemplo, para o “Monstros: A Universidade”, trabalhei com o Dice Tsutsumi por dois anos e meio, só para aquilo. No “À Procura de Dory”, com o qual também colaborei, foram apenas três meses. Em pouco tempo tens que te voltar a habituar a uma nova linguagem e conseguir transmiti-la num período curto de tempo. Isso é bastante complexo.

[o trailer de “Monstros: Universidade”]

E pode dar-se o caso de um acumular de trabalho, de uma intensidade excessiva em certos períodos?
Não assim tanto, podia ser pior. Estou na Pixar há seis anos e acho que tive de trabalhar ao sábado três vezes.

E dormiu bem, a maior parte das vezes.
Sim, dormi bem, às vezes sonho com o trabalho, mas pronto, quanto a isso não há nada que possa fazer (risos).

Sonha com personagens e assim?
Não, acho que são só tarefas por cumprir.

Está a trabalhar num novo filme da Pixar, “Coco”, que estreia em 2017. O que nos pode contar sobre isso, se que é que pode contar alguma coisa.
Bom, não é suposto falar-se sobre isso de todo. Só posso dizer que tenho uma imagem feita por mim, um desenho, que tem a ver com o festival mexicano Dia dos Mortos. E posso dizer que acho que vai ser um filme muito bom.

Que outros projetos tem na sua vida?
Estou a trabalhar num livro infantil, esse é um projeto pessoal e também estou a colaborar com um livro de banda desenhada, que vai ser editado em França provavelmente para o próximo ano.

Cresceu na China e depois mudou-se para os EUA, essa mudança alterou algo da sua condição artística?
Sim, é uma diferença cultural enorme. Sinto-me melhor talvez com a cultura e os ideais americanos atualmente, no entanto, quanto mais envelheço mais tenho saudades, mais me apareço alinhar…parece que a China me está a chamar.

Portanto, quando o papel está em branco tem tendência para pender mais para alguns dos lados ou é apenas Shelly Wan a desenhar?
Não sei…teria de pensar durante um tempo. Talvez tenha uma influência mais ocidental, mesmo quando estudava na China já era assim, hoje em dia não tenho assim tanta certeza.