Raquel Tavares foi uma contadora de histórias. Parecia estar descontraidamente sentada numa das pequenas janelas de Alfama a cantar para a vizinhança ou a contar histórias a quem passava. Mas não: ali vestida de branco e “tranças no cabelo”, Raquel protagonizou o último concerto do Caixa Alfama 2016. Entrou primeiro só com a voz: “Alfama não cheira a fado, mas não tem outra canção”. Depois, de corpo inteiro, vestido branco, sorriso rasgado e um monte de histórias nas mangas, falou sobre a amizade com Tiago Bettencourt, sobre a singularidade de António Zambujo, sobre o carinho para com as tias.

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Raquel Tavares deu o último espectáculo do Caixa Alfama. Créditos: samuel m.

Prestou um dos tributos mais sentidos a Beatriz da Conceição, cuja herança foi homenageada nesta última noite do festival: os ecrãs gigantes mostraram as duas à mesa de cigarro na mão e vinho no copo a falar sobre a vida. “Bia”, assim lhe chamavam os amigos, respondia com impaciência mascarada às perguntas da jovem Raquel: “Se gosto de uma pessoa, gosto de a ouvir. Quer dizer, se cantar mal também lhe digo logo para se deixar disto e ir lavar escadas”. No vídeo, Bia pisca o olho à câmara e admite que já tinha pensado em reformar-se para “dar o lugar aos mais novos”. É que só tem saudades de ter saudades — “desembrulha lá esta, oh Raquel” — e também só lhe faltava fazer uma coisa: morrer, “deitada na cama, sem tropeções nem quedas”. Ir ao Coliseu é que não: “Porra, eu detesto o Coliseu”. Beatriz da Conceição morreu em novembro do ano passado e deixou um rasto vincado na história da cultura portuguesa com o seu fado. A sua alma vagueou pelo festival, numa noite de espaços esgotados que às onze da noite já estavam a levar muita gente a desistir de Alfama.

Quem ficou e viu, no entanto, não se arrependeu. O silêncio bairrista que reina na Calçada de São Vicente, onde não há mais que um homem a assobiar um jazz e um gato preto a espreitar, esfuma-se de um momento para o outro nos primeiros degraus das Escadinhas de Santo Estêvão. Há fado vadio num dos restaurantes e turistas — mais do que ontem — a tentar encontrar o Museu do Fado. É lá dentro, debaixo dos olhos de uma Amália Rodrigues personificada em guitarras pintadas, que acontece um dos momentos mais familiares da noite. O auditório esteve à pinha para ouvir António Parreira, os seus filhos e amigos — “eu já nem sei quais deles são meus filhos ou não” — a tocar umas guitarradas. Assim, puro e cru, sem nenhuma voz além da inconfundível que saía das cordas.

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Lá fora, no Largo do Chafariz de Dentro, há mais gente — e mais jovem — reunida para ouvir o típico Fado à Janela do Caixa Alfama. Foi assim pelo menos durante o início da noite: cheirava mais a vinho e a cerveja na rua, havia mais gente a ziguezaguear pela calçada lisboeta (e não apenas porque as ruelas são tortas). Também nós ziguezagueámos: depois de pedirmos uma bifana subimos uma escadaria muito estreita. A tarefa foi árdua, mas nada inglória: lá em cima, no Adro da Igreja de Santo Estêvão, encontra-se uma vista sossegada para o Tejo e uma Cláudia Madur que canta por duas: está grávida e põe a plateia a dançar com uma Marcha de Alfama. “Normalmente quando estou lá para o Norte acabo os meus concertos com o Porto Sentido, mas aqui se calhar não faz sentido”, diz ela. Fazia, as pessoas queriam.

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Largo de São Miguel na última noite de Caixa Alfama. Créditos: samuel m.

Se aqui em Santo Estêvão o ambiente é intimista, junto à Igreja de São Miguel a festa parece ser maior. Era um espaço catita, aquele. De um lado tocava-se fado à janela, do outro várias pessoas tentavam entrar na nave única e assistir aos fados que são como rezas. A insistência era compreensível: o altar talhado a ouro, as palavras bíblicas dos fadistas e a cruz de Cristo pendurada na parede combinavam tão bem que a religião podia ficar para lá da porta.

Ali dentro contava a arte e dessa havia muita. Havia aqui e também no Centro Cultural Dr. Magalhães Lima, onde uma fila generosa se formou para ouvir Marco Rodrigues e onde, mais tarde, um calor insuportável tomou conta da atuação de Aldina Duarte. A sala estava completamente cheia e o som do espaço dava um novo tom à canção. A subida íngreme que é necessária para chegar aqui valia bem a pena.

Senhoras com o salto preso ao chão, almas fadistas de xaile ao ombro, pastéis de bacalhau com vinho, Amália Rodrigues sempre na garganta, Beatriz da Conceição na memória. A segunda e última noite do Caixa Alfama terminou num suspiro de satisfação. E vai-se a ver, Alfama é para todos, novos e velhos, mais subida menos subida. Tal e qual o fado.