No início do outono de 1965, em plena Guerra Fria, a BBC decidiu cancelar a exibição de um filme que tinha encomendado ao realizador Peter Watkins, intitulado “The War Game”, que descrevia os efeitos de um ataque nuclear soviético à Grã-Bretanha, e o caos que rapidamente se instalava entre os sobreviventes, fazendo desabar o edifício da sociedade. Rodado em registo de “what if…”, como o simulacro de um documentário “real”, “The War Game” foi considerado excessivamente realista e impressionante demais para transmissão pública, e mostrado apenas a um público composto por convidados da estação estatal.

[Excerto de “The War Game”]

Só 20 anos mais tarde, em 1985, “The War Game” seria visto na BBC, embora logo após a sua interdição televisiva, tenha sido exibido nos cinemas britânicos e no circuito internacional, acabando por ganhar o Óscar de Melhor Documentário em 1967. “The War Game” é um dos mais célebres filmes de Peter Watkins, que vai ter uma retrospetiva da sua obra no DocLisboa 2016 (20 a 30 de Outubro), onde passarão títulos como “Culloden”, “The Forgotten Faces”, “The Gladiators”, “Punishment Park”, “Edvard Munch” ou “La Commune”.

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Entretanto, em Portugal, um realizador chamado António de Macedo, fazia os primeiros filmes, incluído no movimento do Cinema Novo. A partir dos anos 70, contra ventos e marés de neo-realismos, naturalismos e a hipertrofiada tendência autorista do cinema nacional e o seu desprezo por tudo que tenha a ver com a imaginação ligada ao sobrenatural ou à fantasia, Macedo passou a dedicar-se ao cinema fantástico (com passagens pela televisão), assinando filmes como “O Príncipe com Orelhas de Burro”, “Os Emissários de Khalom” ou “Chá Forte com Limão”, este o seu último, em 1993.

[Excerto de “Os Emissários de Khalom”, de António de Macedo]

https://youtu.be/wzc4ssOfSX8

António de Macedo não filma desde então, por não conseguir os necessários apoios estatais. Depois da Cinemateca lhe ter dedicado uma retrospetiva em 2012, e de no ano seguinte o Fantasporto o ter homenageado e premiado, o autor de “Sete Balas para Selma”, um dos raros policiais de ação portugueses, e de “As Horas de Maria”, um dos mais controversos filmes do pós-25 de Abril (em 1979, houve violência à porta do Nimas, o cinema em que foi estreado, bem como ameaças de bomba), é objeto de um documentário biográfico. Intitulado “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”, e realizado por João Monteiro, um dos membros da direção do MOTELX, o filme irá encerrar o DocLisboa este ano.

[“Trailer” de “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”]

A retrospetiva de Peter Watkins, com “War Games” em natural destaque, e o documentário dedicado a António de Macedo, realizador censurado por razões políticas no regime autoritário e por razões de política de gosto em democracia, são dois dos momentos maiores desta 14ª edição do DocLisboa-Festival Internacional de Cinema. O festival estreia uma nova secção não-competitiva, Da Terra à Lua, para mostrar filmes de nomes importantes do documentarismo contemporâneo e tentar dar um panorama do mundo, e que nesta primeira edição irá acolher obras de Rithy Panh (“Exile”), Werner Herzog (“Lo and Behold, Reveries of the Connected World”), Avi Mograbi (“Between Fences”), Wang Bing (“Ta’ang”) ou da portuguesa Catarina Alves Costa (“Pedra e Cal”). A outra retrospetiva é Por um Cinema Impossível: Documentário e Vanguarda em Cuba, sobre o documentarismo de propaganda do regime logo à seguir à revolução, incluindo ainda filmes de cineastas como Joris Ivens, Chris Maker ou Agnès Varda, que puseram as suas câmaras ao serviço da miragem do “socialismo tropical” castrista.

[“Trailer” de “Lo and Behold, Reveries of the Connected World”]

Excerto de “Between Fences”, de Avi Mograbi

Há 259 filmes para ver este ano nas várias secções do Doc 2016, entre curtas e longas-metragens, e que vão do de abertura, “Oleg y las Raras Artes”, do espanhol Andrés Duque, sobre o último pianista que tocava no piano do czar Nicolau II, até “O Espectador Espantado”, do português Edgar Pêra, uma reflexão sobre o que é e ser espetador de cinema; de “300 Miles”, do sírio Orwa Al Mokdad, que, fora do seu país, tenta perceber o que lá sucede, ouvindo um estudante pacifista e um combatente anti-regime, até “Vendredi 13”, do francês Nicolas Klotz, que se centra nos reflexos dos atentados de 13 de Novembro em Paris num programa semanal de rádio; de “By Sidney Lumet”, de Nancy Buisrki, uma entrevista biográfica com o falecido realizador de “Serpico”, “Pânico na Televisão” e “O Príncipe da Cidade”, a “Bowie, l’homme cent visages ou le Fantôme de Hérouville”, de Gaetan Chataigner, que nos fala de David Bowie através de um do sítios onde ele gravou, os estúdios do Castelo de Hérouville. Vão todos contar-nos histórias do imenso real ao longo de onze dias.

[“Trailer” de “Bowie, l’homme cent visages ou le Fantôme de Hérouville”]