O novo filme de Tim Burton, “A Casa de Miss Peregrine para Crianças Peculiares”, não é um projeto pessoal do realizador. É uma proposta de estúdio que Burton aceitou, claramente porque o livro homónimo de Ransom Riggs (primeiro de uma série para “jovens adultos” – parece que a palavra “adolescente” passou de moda — que já vai em três) em que se baseia lhe falou à sensibilidade por ter temas, ambientes, características e figuras que encaixam bem nas suas idiossincrasias. Um desses temas, constante na filmografia de Burton, é o da excecionalidade insólita de personagens à margem da sociedade quotidiana. E se há coisa que não falta nesta história que conjuga elementos de fantasia retro-gótica e de ficção científica moderadamente “steampunk” são personagens com características excecionais.

[Veja o “trailer” de “A Casa de Miss Peregrine para Crianças Peculiares”]

As crianças “peculiares” do título são miúdos e adolescentes mutantes ou com poderes especiais, uma espécie de X-Kids (mais leves que o ar, fortes como o Super-Homem, capazes de dominar o fogo, invisíveis, etc. – gosto especialmente do garoto que põe uma lente no olho e projeta os sonhos e as premonições que teve como se fossem filmes), que nunca crescem e vivem em vórtices temporais onde o tempo parou e é eternamente o mesmo dia. Assim, estão resguardados não só da sociedade como também dos “peculiares” dissidentes que se transformaram em monstros e só podem readquirir forma (mais ou menos) humana se comerem os olhos das crianças “peculiares” (uma das sequências mais “burtonianas” do filme envolve um banquete dos mesmos, deglutidos como se fossem uma iguaria rara).

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[Veja Tim Burton falar do filme]

As casas são geridas por Ymbrynes, mulheres “peculiares” cujos dons são o de se poderem transformar em aves e criar e manter vórtices temporais. É à de Miss Peregrine (uma Eva Green “vitoriana” e a fumar cachimbo), situada numa remota e escassamente povoada ilha do País de Gales, e onde é para sempre um dia de setembro de 1943, que vai ter, na companhia do pai, e viajando desde a distante Florida, o jovem Jacob (Asa Butterfield), também ele um adolescente inadaptado e solitário, seguindo as pistas deixadas pelo avô (Terence Stamp), que apareceu morto em circunstâncias muito estranhas e que poderá ter ligações ao mundo dos “peculiares”. Lá chegado, Jacob trava conhecimento com as crianças da casa de Miss Peregrine, tem um derriço com a loura e anti-gravitacional Emma (Ella Purnell) e ajuda a combater o vilão Barron (Samuel L. Jackson), que é a versão cientista louco de um “peculiar” dissidente.

[Veja a entrevista com Eva Green]

É mais do que óbvio que Tim Burton se deleitou especialmente a visualizar os vários “peculiares” e a afeiçoá-los, bem como os ambientes onde eles existem, ao seu universo cinematográfico, tendo até gizado um momento de animação “stop motion” onde homenageia Ray Harryhausen, um dos seus mestres, e concebido uma sequência subaquática entre o feérico e o macabro envolvendo Jacob, Emma e um navio naufragado, e que deverá passar a constar em qualquer antologia do fantástico cinematográfico. Um cuidado que Jane Goldman também podia ter tido no seu argumento, que põe em causa a coerência interna da história na parte da batalha decisiva entre Jacob e os jovens locatários da Senhora Peregrine, e os “peculiares” maléficos em Blackpool.

[Veja a entrevista com Asa Butterfiled e Ella Purnell]

Não se sente em “A Casa de Miss Peregrine para Crianças Peculiares” que Burton tenha querido fazer um filme de super-heróis juvenis “alternativo” e pontuado com o seu peculiar humor negro, nem tão pouco uma resposta “freakish” às aventuras de Harry Potter, tanto mais que não se trata de um argumento original. O realizador definiu-o chamando-lhe “‘um ‘Mary Poppins’ assustador”. Este não é um Burton “vintage”, é uma encomenda realizada com muita empatia, e a haver continuações, esperemos que ele as deixe noutras mãos. Mas em termos de miolo fantástico e de adaptações recentes ao cinema de livros para adolescentes, “A Casa de Miss Peregrine para Crianças Peculiares” varre a concorrência com uma mão atrás das costas.