Os domingos eram sagrados para a família Moutinho. O ritual era sempre igual: levar as crianças às matinés da casa de fados no Estoril. Pela mão dos pais, o pequeno Carlos, o Hélder e o Pedro saíam de Oeiras para ouvir cantar a saudade. Foi aí que o irmão do meio começou a conhecer as diferentes melodias dos fados tradicionais.

Tinha apenas 14 anos.“Não cantava mas ia assistir e assimilava os poemas. Quando comecei a cantar dava por mim a lembrar esses fados antigos”, conta Hélder Moutinho que se estreia este sábado no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa.

Não sabia de letra os nomes dos fados mas sempre que era preciso, perguntava ao pai. Do bisavô, passando pelo avô, mãe e irmãos, ninguém escapava à música tradicional portuguesa. Era difícil passar ao lado. Hélder ganhou o gosto natural pelo fado, mas só dez anos depois das sessões da tarde de domingo na linha. “Pegava nos poemas que escrevia e tentava cantá-los em vários melodias dos fados tradicionais”, recorda.

Estávamos em 1994 e Lisboa era a capital europeia da Cultura. Hélder começou por cantar apenas para amigos, ao mesmo tempo que se iniciou na escrita. Foi convidado para atuar numa casa de fados do Bairro Alto e da Bica e passou a fazer espetáculos todas as quintas, sextas e sábados. “Era uma espécie de fado vadio e eu lá andava. Não havia elenco. Havia músicos e começávamos a cantar. Era uma onda mais tranquila esse conceito”, relembra o fadista hoje com 47 anos.

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Encontramo-lo no número 139 da Rua dos Remédios. É segunda-feira à noite e o relógio marca quase 22h00. No labirinto de ruas de Alfama são poucas as casas históricas e restaurantes abertos. Porta sim, porta sim, há um letreiro a giz a dizer que “Aqui há fado” mas conta-se pelos dedos quem abriu portas nesta primeira semana de outubro. “Segunda normalmente é mais fraco. Eu, por exemplo, fecho a minha”, diz Hélder, acrescentando que 75% dos clientes são estrangeiros.

É na antiga capela de um palácio oitocentista que dá agora abrigo à Mesa de Frades, casa de fados e restaurante onde Hélder vai atuar. Foi ele que, em 2003, abriu a casa com Bela, amiga e sócia do seu atual restaurante, Maria da Mouraria. Decorado com os azulejos, o espaço tornou-se uma espécie de capela de fadistas, onde em cada noite há um amigo a cantar. Hoje é a vez do Hélder.

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Hélder Moutinho abriu a Mesa de Frades em 2003 com a sócia e amiga Bela

Das altas portas verdes, semiabertas, consegue-se ver um espaço íntimo com pouco mais de seis mesas de jantar. Ninguém fala português. “Sabe se aqui há fado hoje?”, pergunta um casal americano. Vieram de propósito a Lisboa depois de assistir a um concerto da fadista Mariza em Los Angeles, no Holywood Boulevard. “Não entendemos o que dizem, mas é muito emocionante. Vem de dentro”, explica Marc. Depois do espetáculo da fadista portuguesa em terras de Tio Sam, passaram a ouvir regularmente fado e a comprar todos os CDs da artista. Mesmo sem entender uma única palavra.

Hélder está habituado. Tem levado o fado além-fronteiras. Maior parte da sua agenda de espetáculos é lá fora. “Não há grande capacidade aqui. Todos sabemos como está a cultura em Portugal”, diz o fadista, explicando que as programações das salas de espetáculos estão muito mais preocupadas em vender muitos bilhetes. Hélder não é fã de salas grandes. Prefere sempre ambientes mais intimistas.

Polónia, Rússia, Finlândia ou Coreia do Sul foram apenas alguns países por onde já passou. “Os coreanos surpreenderam-me. Achei que iam ser como os japoneses que fecham os olhos e ficam meio zen quando ouvem fado.” Só que a reação foi contrária. “Teve o rock ‘n’ roll, como costumamos dizer. Foi a total euforia.”

Foi lá fora também que redescobriu o significado da palavra saudade. “Comentei num espetáculo que não havia tradução para inglês, que queria dizer que era sobre sentir falta”, conta. No final, as pessoas iam ter com ele a pedir um autógrafo e para escrever alguma coisa onde tivesse saudade. “Ficaram enternecidos com a palavra mas de uma forma feliz. Descobri que pode ser um sentimento positivo que dá gozo.”

Foi o segundo fadista a cantar em Kiev. A primeira pessoa tinha sido Amália Rodrigues, no começo dos anos 70. “Nos EUA tive pessoas admiradas porque nunca tinham visto um homem a cantar fado. Fui apresentado como o Hélder, man singer. Era um bicho raro.” Por isso, não é de estranhar que o casal de Los Angeles tenha questionado se só havia mulheres a cantar fado.

Marc e Kate, o casal americano, sentaram-se na última mesa livre, mesmo ao pé da porta. Vinham já jantados e pediram um copo de vinho tinto e um whisky para acompanhar o espetáculo. Podem esperar porque não será para já. Uma mesa à frente, estão duas senhoras na casa dos 70. Esperam pela atuação de Hélder. Nunca ouviram falar dele mas estão curiosas. “É a primeira vez que vou ouvir fado. Comentaram que ia haver e vamos esperar”, diz Joanna, do Canadá.

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O novo álbum, “O Manual do Coração”,não tem “uma única música que não seja original”

No compasso de espera até que os músicos cheguem, os funcionários do restaurante baixam a luz e colocam velas em todas as mesas. Do lado de dentro do balcão, Hélder Moutinho pede um “cheirinho”. “O que tens aí? Bushmills? Pode ser. É para aquecer a voz”, diz. Perto das 23h00, chega o guitarrista e dono da Mesa de Frades, Pedro Castro. Criou este projeto a pensar na sua geração. Resultado? Noites únicas pela madrugada dentro nas quais os fadistas têm liberdade máxima.

Antes de começarem chegam mais dois grupos de franceses que se acomodam. Há ainda mais gente à porta da capela a fumar os últimos cigarros. Hélder não se aproxima. Deixou de fumar há um ano e 11 meses. Fumava dois maços por dia. Enquanto os músicos afinam as cordas da guitarra, conversa com os amigos portugueses que estão ali para o ver a cantar o reportório dos seus cinco álbuns.

Sete fados e alguns Cantos (1999) foi o primeiro álbum que lançou. Foi a Fernando Maurício, Alfredo Marceneiro e Maria Beatriz da Conceição que foi buscar algumas referências. Aliás foi a Bia que lhe fez um dos primeiros elogios profissionais. “Gostava da forma como cantava, de como pegava nas palavras e achava muito interessante”, conta Hélder.

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Helder Moutinho a atuar na Mesa de Frades, sobretudo para estrangeiros

Seguiu-se Luz de Lisboa (2004), Que Fado é Este que Trago (2008), 1987 (2013). A prática e o conhecimento das melodias do fado tradicional dão-lhe a segurança necessária para o deixar navegar por outros horizontes. “Lembro-me de um produtor me pedir para não fazer quebras com a voz ou tentar ‘fadistar’ mais. Porque está na minha massa”, diz. Por isso, este último disco, O Manual do Coração (2016), é um disco de fado-canções. “Não há uma única música que não seja original. Além disso tem a estrutura métrica e tónica das melodias tradicionais”, conta ao Observador sobre o novo disco que apresenta sábado no CCB.

Os poemas originais são de João Monge e a música conta com a assinatura de nomes como Carlos Barretto, que cria um fado com cheiro a tango, João Gil, que faz fados tradicionais, ou Vitorino, que faz o que parece ser um fado-revista. Hélder quis trazer ao fado “novas sonoridades, com novas orquestras, baterias, pianos”. “A ideia foi fazer coisas que me dão prazer. E ter o João Monge a escrever para mim, é um luxo”, acrescenta Hélder Moutinho, que já tinha trabalhado com o músico em dois discos anteriores.

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Hélder Moutinho costuma cantar na Mesa de Frades, na Rua dos Remédios

No CCB, este sábado vai apresentar dois originais. “Vou ser verdadeiro naquilo que estou a fazer. O fado é uma música e está constantemente em embrião, a sofrer influências locais”, afirma. A seguir, espera gravar a solo um projeto e colocá-lo disponível na web. “Gravar, misturar e está feito”, diz. Moutinho quer acelerar o processo de ter conteúdos originais cá fora, “mais depressa”. Até lá, ficará por cá, na sua casa de fados e em pequenas atuações. Não tem espetáculos marcados lá fora.”Vou ter férias que também preciso”, concluiu.

É hora de começar. Já passa das 23h20. O público está impaciente. O proprietário pede silêncio. “Vai-se cantar o fado.”

Hélder Moutinho atua este sábado, às 21h, no Centro Cultural de Belém para um concerto de apresentação de O Manual do Coração, o seu novo disco. Os bilhetes custam entre 5 e 18 euros.