Schengen está em risco. Ou seja, a livre circulação de pessoas na União Europeia não está garantida. A posição recente da Dinamarca de que vai manter as suas fronteiras fechadas — numa afronta direta à Comissão Europeia — é só um exemplo entre outros Estados europeus que são abertamente contra um dos ex-líbris do projeto europeu, pelo menos na forma como o espaço Schengen foi idealizado. Uma entidade europeia estima que o fim da livre circulação de pessoas poderia custar à economia entre 100 mil milhões e os 230 mil milhões de euros.
Os atentados terroristas em Paris e Bruxelas nos últimos dois anos e a chegada em massa de refugiados do norte de África e do Médio Oriente tiveram como consequências mais visíveis o fechar das portas na Europa. Para já, são sete os países que fazem parte do acordo Schengen com restrições à livre circulação. Mas aquilo que começou por ser apresentado como uma solução temporária ameaça agora transformar-se num perpétuo controlo fronteiriço – e isso significaria o fim de uma das maiores conquistas do projeto europeu.
Dimitris Avramopoulos, comissário europeu para a Migração, avisa que recuperar a livre-circulação nos 27 países é uma prioridade de “topo” para a Comissão. Mas o discurso é ambíguo: Avramopoulos admite que, com os prazos para a suspensão temporária de Schengen a chegar ao fim, países como a Alemanha, França ou a Bélgica podem pedir um prolongamento desse estado de exceção.
Em Bruxelas, já se fazem contas ao custo das opções mais recentes. Em abril, o Parlamento Europeu encomendou à Unidade de Valor Acrescentado Europeia – um centro de análise do Parlamento – uma avaliação ao custo (económico, desde logo, mas também político e cultural) de um encerramento permanente das fronteiras. Acabar com Schengen custaria cerca de 20 mil milhões de euros aos Estados-membros. Mas a fatura pode ficar acima — muito acima — dessa fasquia.
A (não tão) livre circulação
Vamos ao concreto: França, Polónia, Alemanha, Áustria, Dinamarca, Suécia e Noruega. Estes sete países reintroduziram o controlo sistemático das suas fronteiras terrestres desde o início de 2015.
Os dois primeiros países, França e Polónia, suspenderam Schengen sob o argumento de que “previsíveis eventos futuros” pudessem pôr em risco a segurança. No caso da Polónia, no entanto, essas circunstâncias esgotaram-se na Cimeira da NATO e na visita do Papa ao país (mas ambos os eventos tiveram lugar em julho). Em França, o atentado de Nice, também em julho deste ano, apesar de não ter sido prevenido pelo controlo fronteiriço que já nessa altura vigorava, levou a um prolongamento da situação até janeiro de 2017.
Os restantes países fecharam as portas à livre-circulação por recomendação do Conselho Europeu, onde têm assento os chefes de Estado e de Governo da União Europeia. Os controlos vigoram até meados do próximo mês (entre 11 e 12 de novembro), mas a Comissão já antecipa que Schengen não volte à normalidade tão cedo quanto desejava.
Há semana e meia, em Bruxelas, o comissário europeu para a Migração admitia que os tais países do centro e norte da Europa em que o estado de exceção estaria a chegar ao fim podem apresentar pedidos de prolongamento da suspensão de Schengen. Se isso acontecer, diz Avramopoulos, a Comissão Europeia terá de fazer uma avaliação caso a caso para decidir se os riscos à segurança interna, e da própria União, se mantêm. “Mas a decisão foi tomada: vamos voltar a Schengen”, e isso deverá acontecer “o mais cedo possível”.
O problema é que o comissário europeu não arrisca, sequer, avançar com uma data limite para a reposição integral da livre circulação de pessoas. Avramopoulos prefere focar os seus esforços na pressão pública que vai exercendo sobre os governantes nacionais.
Estamos determinados a trazer Schengen de volta à normalidade, é uma das nossas principais prioridades porque o movimento livre tem de ser garantido por todos os meios”, sublinha o responsável europeu.
O aviso é da Comissão, mas já há outras instituições europeias a chamar a si o controlo do respeito pela lei de Schengen por parte dos diferentes países da comunidade a 27.
Países Schengen | |||
Áustria | Dinamarca | República Checa | Dinamarca |
Estónia | Finlândia | França | Alemanha |
Grécia | Hungria | Islândia | Itália |
Letónia | Lituânia | Luxemburgo | Malta |
Holanda | Malta | Noruega | Polónia |
Portugal | Eslováquia | Eslovénia | Espanha |
Suécia | Suíça | Liechtenstein |
Acabar com Schengen pode custar até 230 mil milhões
O debate sobre as migrações dentro de e para dentro do espaço europeu anda de mãos dadas com as preocupações com a segurança dos cidadãos e do território. Foi isso mesmo que Avramopoulos sublinhou na sua mais recente intervenção no Parlamento Europeu.
O comissário sublinha que “a Europa é definida por Schengen” e que a livre circulação é um valor absoluto para a atual Comissão. Mas o grego recorda os Estados-membros da sua responsabilidade na garantia da segurança interna. Quando se pedem mais meios humanos e financeiros, todos têm de dar o seu contributo.
Além disso, a troca de informação entre polícias e órgãos judiciais dos diferentes países tem de ser reforçada. Essa intenção ficou expressa nas conclusões no recente encontro de chefes de Estado e de Governo, em Bratislava, para garantir que potenciais autores de ataques terroristas não consigam escapar às autoridades fugindo para outro país (como aconteceu com Salah Abdeslam, o grande mentor dos ataques na capital francesa, que viajou de carro de Paris até aos arredores de Bruxelas).
O discurso da necessidade de reforço da segurança, que surge a par da defesa do projeto Schengen, serve, em boa medida, para tentar esvaziar o balão de oxigénio da correntes populistas que se fazem notar em vários Estados europeus e que têm aproveitado o medo provocado com os ataques terroristas em solo europeu para fazer a apologia de um regresso às fronteiras nacionais.
A par da segurança, está em posto em prática um discurso sobre o (avultadíssimo) custo de um eventual retrocesso na livre circulação. A Unidade Europeia de Valor Acrescentado fez as contas a vários cenários:
- Suspensão limitada a alguns países, durante dois anos
- Suspensão geral, também a dois anos
- Suspensão permanente por parte de alguns Estados
- Suspensão permanente adotada por todos os países Schengen
De acordo com a mesma unidade, o impacto financeiro de uma suspensão de Schengen pode variar bastante: “Nos dois primeiros cenários em que quantificamos os impactos de uma suspensão a dois anos [para um número limitado de países, como acontece atualmente], estimamos que os custos para os países envolvidos podem variar entre os dois milhões e os 560 milhões para esse período de dois anos, para o primeiro cenário, e entre os 3,4 mil milhões e os 12,2 mil milhões para o segundo cenário“, refere o estudo da Unidade Europeia de Valor Acrescentado.
“O maior custo está associado a um cenário permanente de não-Schengen, em que todos os países saem, e que varia entre os 100 mil e os 230 mil milhões de euros“, acrescenta a mesma unidade. De forma imediata, o fim da livre-circulação traduzir-se-ia num custo de 20 mil milhões. Esse preço teria de ser suportado num período de entre dois a dez anos.
Uma “polícia” parlamentar para fiscalizar Schengen
Também foi anunciado, no Parlamento Europeu, a criação de um grupo de controlo para o espaço Schengen. Coordenada pelo eurodeputado Carlos Coelho (PSD), a equipa vai analisar em permanência os relatórios do Mecanismo de Avaliação deste espaço europeu de circulação livre de pessoas.
A medida surge na sequência de alguns relatos de abusos no controlo da circulação de cidadãos europeus dentro do espaço comunitário sem fronteiras. Há semana e meia, numa conferência sobre o presente e o futuro de Schengen, organizada pela Comissão de Liberdades Civis, Justiça e Assuntos Internos do Parlamento Europeu, Lina Vosyliūtė lançava o alerta sobre a maior frequência de controlos indevidos a que se tem assistido nos últimos meses. A investigadora do Centro de Estudo das Políticas Europeias entende, no entanto, que o respeito pela livre-circulação não precisa de uma reforma legislativa. “Schengen é à prova de crise”, considera Vosyliūtė.
O trabalho do grupo liderado por Carlos Coelho poderá ser importante para trazer a público informações classificadas sobre a forma como cada país controla a entrada no seu território. Na mesma conferência, em Bruxelas, um representante da Comissão Europeia deixou escapar a ideia de que, no atual modelo de funcionamento do Mecanismo de Avaliação de Schengen, o acesso à informação é condicionado pelos próprios Estados. De um lado, os que avaliam, do outro, os avaliados. E a lógica de entendimento direto que se estabelece entre uns e outros leva a que as instituições europeias possam ter um acesso demasiado tardio (e limitado) a essa informação.
Este Parlamento não se pode demitir do controlo democrático sobre aquilo que se está a passar nas fronteiras” e deve melhorar o seu acesso à informação e ter a capacidade de analisar os resultados de avaliação de Schengen”, defende Carlos Coelho, reconhecendo que “o nível de acesso do PE aos resultados do sistema de avaliação de Schengen não é idêntico ao resultado do assessment [da avaliação] de vulnerabilidade da Frontex”.
Os relatórios produzidos pelo mecanismo de avaliação são classificados. É essa batalha que Carlos Coelho pretende travar, ao requerer à Comissão Europeia que seja mais criteriosa na classificação dos documentos, mantendo protegidas apenas as informações sensíveis — por exemplo, que ponham em causa, de forma direta, a segurança de um Estado-membro. Tudo o resto, e essa será a maior fatia da informação produzida pelo organismo europeu de avaliação de fronteiras, deve ser libertado.
Naquilo que foi possível analisar até ao momento, o eurodeputado português destaca problemas técnicos mais simples que foram detetados — uma câmara de filmar que está mal posicionada num posto de controlo fronteiriço –, mas também dificuldades mais complexas: a formação inadequada dos guardas a quem cabe fazer o controlo (que também são em número insuficiente), a falta de definição dos mecanismos de deteção de cidadãos em situação irregular, carências de financiamento e de equipamentos. “Espero que o Parlamento ajude a corrigir as más prestações das polícias de fronteira onde elas não estão a correr bem. Antigamente, isto era posto para debaixo do tapete porque era um sistema intergovernamental. Agora é um sistema comunitário, mas está muito limitado à Comissão Europeia e aos Estados-membros. Com o envolvimento do Parlamento podemos ter uma pressão maior para que, detetado um problema numa fronteira, ele não seja esquecido mas que sejam convocados os mecanismos necessários para ajudar a resolver o problema e o Parlamento pressionar a Comissão e os Estados-membros para que isso aconteça”, refere Carlos Coelho.
Entretanto, a nova agência europeia para o controlo de fronteiras (a Guarda Costeira e de Fronteiras Europeia) foi inaugurada com uma cerimónia na Hungria, o Estado que fechou as portas a estrangeiros e que se recusa a aceitar mais refugiados em busca de asilo no seu território, empurrando essa responsabilidade para países como a Grécia e Itália.
A equipa da nova agência, que sucede à Frontex, terá uma equipa fixa de 1500 elementos, dos vários países da União (o tal esforço comum a que o comissário Avramopoulos se referia), uma parte dos quais permanentemente disponíveis para acorrer a um Estado que tenha de lidar com uma vaga inesperada de cidadãos estrangeiros que cheguem ao seu território.