Quando todos os cientistas seguem um determinado caminho, às vezes vale a pena tentar um caminho alternativo. Foi o que fez a equipa de Pedro Beltrão. Os investigadores descreveram, pela primeira vez, que papel tem um mecanismo celular específico — os “interruptores” das proteínas — na evolução das espécies. Os resultados foram publicados na conceituada revista científica Science e o investigador português explicou ao Observador que importância podem ter no estudo do cancro.

Parecem não restar dúvidas de que a evolução acontece, por isso a atenção dos investigadores têm-se centrado em “como acontece”. Embora as manifestações possam ser visíveis e impressionantes, como a cabeça do tubarão-martelo ou o pescoço da girafa, as alterações responsáveis pelas transformações acontecem ao nível das células, mais propriamente ao nível do material genético. Mas se a maior parte das equipas se tem centrado nas alterações no fabrico das proteínas, Pedro Beltrão, investigador no Instituto de Bioinformática do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL-EBI), e respectiva equipa, centrou-se nas mudanças das suas funções.

O material genético guardado dentro do cofre das células — o núcleo — contém todas as instruções para o funcionamento da grande fábrica celular. Mas o cofre não consegue proteger a informação contra todos perigos. Tal como os monges podiam cometer erros na transcrição dos livros, ou até entornar o frasco da tinta sobre palavras importantes, nas células o material genético também pode sofrer modificações mais ou menos profundas — as mutações.

Se estas mutações podem ser responsáveis pela morte de alguns indivíduos, também são um dos principais responsáveis pelo aparecimento de características novas que podem ser vantajosas aos seus portadores. No final, estas mutações podem levar ao aparecimento de novas espécies, tendo um papel importante na evolução.

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“Acho que conseguimos demonstrar de uma forma conclusiva que estas modificações em proteínas são um potencial mecanismo evolutivo muito importante, que é algo que até hoje não era tido em consideração”, disse Pedro Beltrão ao Observador.

A mensagem genética está codificada e tem de ser traduzida em proteínas que desempenham funções específicas, como se fossem pequenos robôs da grande fábrica celular. Uma alteração na mensagem genética pode fazer com que se fabriquem proteínas diferentes ou em quantidades distintas. E é ao estudo destas alterações que os investigadores se têm dedicado, mas equipa de Pedro Beltrão tinha outra ideia: foram perceber se há modificações na forma como se controla a atividade das proteínas ou no local onde atuam nas células.

Imagine um robô com um interruptor ligado a um conjunto de fios. Quando se liga ou desliga esse interruptor, o robô vai desempenhar uma determinada função. Acontece o mesmo com as proteínas — sempre que há uma fosforilação (adição de um grupo fosfato à proteína) mexe-se no interruptor. Agora imagine que mudava o interruptor de sítio e que o ligava a outro conjunto de fios. Quando o ligasse podia acontecer que a função do robô fosse completamente diferente da anterior. Como talvez já esteja a imaginar, com as proteínas acontece o mesmo.

Os mecanismos que controlam a atividade das proteínas mostraram-se assim tão importantes como os mecanismos que controlam o fabrico destas proteínas no processo evolutivo, explicou Pedro Beltrão. A grande diferença é que há muito tempo que era possível acompanhar o fabrico das proteínas — saber quantas tinham sido produzidas, por exemplo –, mas só recentemente se desenvolveram técnicas que permitem verificar que os “interruptores” mudaram de sítio e que impacto é que isso tem no controlo da atividade das proteínas. E foi aproveitando estas novas técnicas que os investigadores conseguiram publicar estes resultados.

“Este artigo é importante porque é uma análise comparativa de como as funções celulares são reguladas ao longo de várias centenas de anos de evolução”, nota Christian Landry, especialista em evolução na Universidade de Laval (Canadá).

A equipa escolheu trabalhar com fungos porque não têm tecidos diferenciados, logo são mais fáceis de comparar entre si. E verificou que os locais de fosforilação (interruptores) mudaram rapidamente e que apenas alguns se conservaram nos locais originais ao longo de centenas de milhões de anos. Mas aquilo que aconteceu com os fungos ao longo da evolução pode ter acontecido com os animais, assegura o investigador português com base em resultados que ainda aguardam publicação.

Claro que perceber os mecanismos envolvidos na evolução é importante, mas para Pedro Beltrão estes resultados têm um impacto mais importante: a investigação na área do cancro. Um tumor, que tem como origem as células do organismo, evolui rapidamente para se transformar em algo completamente diferente. Os tumores têm taxas de mutação elevadas, que lhes permitem escapar ao sistema imunitário, aos sistemas de autocontrolo da replicação celular e de prevenção do erro ou que lhes permitem mesmo adaptar-se e resistir às drogas que são usadas para os matar.

Trocar o interruptor do robô de sítio pode ser o resultado de algumas destas mutações, mas Pedro Beltrão aponta ainda outro tipo de mutações importantes, as que afetam as vias de sinalização — ou seja, as proteínas que têm a capacidade de modificar outras proteínas. Voltando ao nosso robô, imagine que o operador que o estava a controlar ficava doente e com alucinações e que começava a ligar e desligar o interruptor de forma descontrolada. Uma mutação nas vias de sinalização também descontrolar a atividade das proteínas.

De futuro, os cientistas podem tentar comparar os locais de fosforilação das proteínas — os “interruptores” — das células normais com os das células cancerígenas e perceber como é que estes processos — a mudança do local do interruptor ou o descontrolo do operador — podem contribuir para o desenvolvimento da doença.