“A Volta ao Mundo em 80 dias” estreou-se a 17 de Outubro de 1956. E em Dezembro desse mesmo ano chegava “Michael Strogoff”. Dois clássicos da literatura, dois clássicos no cinema a juntar aos que já tinham vindo directamente dos livros de Júlio Verne. Recordamos aqui alguns dos mais marcantes:

“Viagem à Lua” (1902)

É “icónica” a imagem da Lua com a bala espacial espetada num dos olhos. Ficou como “cartaz” deste filme. Um dos primeiros filmes do cinema, um dos primeiríssimos filmes de ficção – e de “ficção científica”. “Longa-metragem” para a época: mais ou menos 15 minutos. A Viagem à Lua de Júlio Verne foi certamente uma das suas inspirações, pelo menos no meio de locomoção sideral – uma cápsula disparada por um gigantesco canhão. Georges Méliés, o “mago do cinema”, representa, nos alvores da arte cinematográfica, a veia da fantasia e do espectáculo, como os irmãos Lumière e outros precoces cineastas do princípio do século XX a do cinema “documental”. A féerie de Méliés inclui coristas de perna ao léu, humor revisteiro: o Professeur Barbenfouillis, por exemplo, chefe da expedição, é literalmente o Professor Barbadespentada. Foi encontrada em 1993 uma cópia colorida à mão, restaurada em 2011, que se pode ver na internet.

https://www.youtube.com/watch?v=_FrdVdKlxUk

“Vinte mil léguas submarinas” (1954)

O romance de Verne deu lugar ao primeiro filme “ao vivo” dos Estúdios Disney. Filmaram-no em Cinemascópio (o “cinema aos copos”, no dizer de uma laracha da época, por oposição ao “cinema aos cálices” do formato normal), formato que fora lançado no ano anterior. Realizou Richard Fleischer, filho de Max Fleischer, pioneiro e grande rival de Disney no cinema de desenhos animados, criador de Betty Boop e da “rotoscopia”, entre muitas outros achados. Fleischer filho nunca teve direito a ser considerado um “autor” mas tem um palmarés de respeito. Depois de se ter feito notar no film noir dos anos quarenta teve uma “década prodigiosa” nos anos 50, usando, com uma única excepção, “The Narrow Margin”, ‘52 (refeito – e bem – nos anos 90, com Gene Hackman e Anne Archer), o novo formato: “Violent Saturday”, ’55, “The Girl in the Red Velvet Swing”, “A rapariga do baloiço vermelho”, ’55, “The Vikings”, ’58, “Compulsion”, “O génio do mal”, ’59 (com Orson Welles num grande papel, mas a não confundir com “A sede do mal”), “These Thousand Hills”, “Duelo na lama”, ’59. Mais tarde assinaria um dos melhores filmes de ficção científica de sempre, “Soylent Green”, “À beira do fim”, ‘ 73. Note-se, além da lula gigante, a interpretação de James Mason (um actor em tempos subestimado) no papel de Capitão Nemo (como o peixinho da Pixar – para a W. Disney, claro).

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“A volta ao mundo em oitenta dias” (1956)

O nome “por cima do título” deste filme é o do produtor, Michael Todd: “Michael Todd’s Around the World in Eighty Days”. Antes disso, o nome dele praticamente não fora visto nos ecrãs. Figura exuberante do mundo do espectáculo (quando morreu num desastre, em 1958, ia a caminho de receber o galardão de “showman of the year”) era um conhecido produtor teatral e estivera envolvido em numerosas produções cinematográficas. Embora sem ser “creditado”, Hollywood era-lhe familiar. Esteve ligado à invenção e vulgarização do “cinerama” e do “cinemascope” e criou o Todd-AO, um sistema baseado no uso de uma película de 70 mm: seguir-se-iam outras inovações de ecrã largo ‘mas o método de Todd foi o primeiro, o mais elegante e o mais perfeito’. Além dessa relação com a ciência e a técnica – Verne simpatizaria – inventou neste filme o cameo em massa como golpe publicitário: inúmeras vedetas participam no filme por uns minutos – de Marlene Dietrich ou George Raft ou Charles Boyer a Buster Keaton ou Frank Sinatra. Cantinflas foi escolhido, com certa incongruência, para o papel do criado francês Passepartout. David Niven como fleumático Phileas Fogg é definitivo. Mike Todd não poupou no talento: o longo genérico final é do genial Saul Bass e fez história. O argumento é de S. J. Perelman, entre outros. Ganhou o Óscar de melhor filme em 1957.

“Miguel Strogoff” (1956)

Há quem tenha este livro por um dos melhores de Verne, embora um tanto fora da sua veia habitual. Esta adaptação – teve uma dúzia delas para cinema e para televisão – foi uma daquelas coproduções que normalmente não auguram nada de bom: é um filme italo-franco-germano-jugoslavo, filmado na Jugoslávia com um elenco e uma ficha técnica que espelham essa misturada original. Os principais intérpretes são o alemão Curd Jurgens, durante certo tempo um dos mais conhecidos e pesadões galãs do cinema europeu, e a francesa Geneviève Page. Também entrava Sylva Koscina. O filme – mais um cinemascópio como foi obrigatório nos anos 50 para qualquer filme com ambições de grande espetáculo – era, tanto quanto me lembro, uma decente versão cinematográfica das aventuras do ‘correio do czar’ imaginado por Júlio Verne, um romance de aventuras por uma vez sem aspetos científicos (a não ser a explicação para que uma lâmina em brasa aplicada aos olhos do protagonista não o deixe cego – salva-o uma “furtiva lágrima”). Foi dirigido, na última fase da sua longa carreira, por Carmine Gallone, um realizador italiano (também ele uma coprodução, de pai italiano e mãe francesa) que começara no cinema mudo (realizou em 1926 a mais grandiosa das respostas italianas às superproduções americanas: “Os últimos dias de Pompeia”).

“Atribulações de um Chinês na China” (1965)

O realizador Philippe de Broca não é muito lembrado hoje em dia. Introduzido no cinema por Claude Chabrol, era de uma família ‘bem’ e pode dizer-se telegraficamente que estava a meio caminho entre a nouvelle vague e os “hussardos”, sem verdadeiramente ser uma coisa nem outra. À época deste filme, Philippe de Broca e Jean-Paul Belmondo estavam no auge da popularidade em França. O primeiro dos seis filmes que fizeram juntos fora o filme de capa-e-espada Cartouche, um grande êxito de público que lançou o realizador comercialmente. Juntaram-se também noutro dos maiores êxitos do cinema francês, “O homem do Rio”, uma paródia dos filmes de ação, e de novo para esta adaptação de um dos romances de Júlio Verne que – como A volta ao mundo em oitenta dias – são mais do que qualquer outra coisa romances de humor. O riso que hoje pode suscitar esta adaptação das “Atribulações” é muitas vezes, no entanto, forçado e – sem jogo de palavras – um tanto amarelo.