Dizem que não se aprende nada a ver televisão, mas as telenovelas ensinaram-me muita coisa. Ensinaram-me, por exemplo, que os adultos se beijavam como ventosas, ainda que só mais tarde me tenha apercebido de que também a língua entrava naquela equação. As novelas do século XXI, já se sabe, são as séries — e umas, mais do que outras, vão ao encontro dessa nossa intemporal necessidade de entender os mistérios do amor ou da troca de fluidos.

Já não são as tradicionais diferenças de classe que servem de força antagonista à concretização do romance, mas os desencontros do mundo moderno: personagens que querem ser livres mas procuram alguém para casar; outras, que desejam casar, mas perseguem neuróticas intangíveis. Demasiadas solicitações, demasiadas aplicações. Ainda que persistam estereótipos, homens e mulheres, independentemente da identidade e orientação, são afinal uma cambada de perdidos.

Nós, espectadores, procuramos consolo na perdição alheia – somos imperfeitos e já não procuramos modelos, pelo contrário. Queremos histórias de amantes que erram e que chafurdam em vergonha, culpa e frustração. Por isso – e porque todos os que se dão à morte já tiveram de ir buscar o seu coração à sarjeta – seguem-se alguns conselhos da amiga ficção para vos ajudar a sobreviver ao desamor.

Se está a pensar em usar uma crise conjugal para justificar uma traição ou vice-versa: “Divorce”

Já dizia a minha avó que uma explicação bem dada faz um calcanhar airoso, ou seja, por mais que se esforce por branquear as suas acções através de bonitos processos de auto-análise (do estilo “não és tu, sou eu” ou “não sou eu, somos nós”), o mais certo é que acabe por terraplanar impiedosamente a vida do seu/sua parceiro/a mal a verdade venha ao de cima. Este é o mote para a nova série cómico-trágica da HBO, em que acompanhamos o processo de divórcio de um casal interpretado por Sarah Jessica Parker e Thomas Haden Church. (De Sharon Horgan — HBO, TV Séries)

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Se anda paranóico/a e não consegue ler o pensamento do seu/sua parceiro/a: “The Affair”

Deve ver, sim, mas é bastante provável que a sua relação termine logo a seguir – o que não é necessariamente mau, se calhar até está a precisar de um abanão. Prestes a estrear a sua terceira temporada, esta série começou por ser um apaixonante exercício de estilo e narrativa: a história de uma relação extra-conjugal contada do ponto de vista dos seus protagonistas, metade do episódio para Noah (Dominic West) e outra metade para Alison (Ruth Wilson). Em cada versão da história, mudam diálogos, cenário, guarda-roupa, realização e outros detalhes, provando que não existe verdade, apenas interpretações, e que somos mestres a manipular memórias da forma que melhor nos convém. Esta história de paixão vai evoluindo para um policial intrincado e vamos vendo cada vez mais perspectivas de mais personagens. Por nos ser vedada a omnisciência, nesta série (como na vida) nada é o que parece – ou seja, se não consegue confiar, também não vale a pena perder tempo a especular. (De Sarah Treem and Hagai Levi — Showtime/TV Séries)

Se acha que está apaixonado/a pela pessoa errada e nunca irá acontecer nada: “Love”

Há menos pessoas certas do que felizes coincidências e, se os protagonistas Mickey e Gus não se cruzassem numa estação de serviço, é muito provável que a vida nunca os juntasse. Ela, bonita, neurótica e dada à autodestruição; ele narigudo e bem comportado – é um amor possível, mas ninguém disse que ia ser fácil. Aliás, eles são decididamente as pessoas erradas um para o outro e isso torna-os humanos e, por vezes, humanamente execráveis. E é precisamente nas nossas falhas que está a nossa compatibilidade – por isso, acredite que esse amor é possível mas vai ter muito para penar. Também vai penar até chegar a segunda temporada de Love, que só estreia no início do ano que vem. (De Judd Apatow, Paul Rust e Lesley Arfin — Netflix)

https://www.youtube.com/watch?v=Ym3LoSj9Xj8

Se é uma mulher independente mas quer amar perdidamente e casar mas afinal não porque liberdade e carreira mas qual carreira porque não tem um tusto mas o que vale é a amizade: “Girls” e “Insecure”

Se Sexo e a Cidade era sobre ser-se uma mulher branca, privilegiada e sofisticada em Nova Iorque, Girls (cuja sexta e última temporada está agendada para o Inverno de 2017) é sobre ser-se uma mulher branca, privilegiada mas ligeiramente menos sofisticada em Nova Iorque. Há mais chicha e mais densidade dramática, mas ainda estamos a falar de jovens adultas cujos pais patrocinam o tempo que passam a sofrer por amor. Já Insecure, que acaba de estrear, traz uma nova camada à experiência da mulher americana no século XXI: a protagonista (e autora) Issa é negra, vive em Los Angeles e tem uma relação estável mas morna. No que ao tema deste artigo diz respeito, todas estão unidas por não saberem o que querem mas desejarem o arrebatamento. (De Lena Dunham — HBO, RTP2; de Issa Rae — HBO, TV Séries)

https://www.youtube.com/watch?v=QLZI935YZnA

Se o único problema na sua relação é pensar demasiado porque, na verdade, está tudo a correr tão bem que até parece mal: “Easy”

A sua situação é bastante mais comum do que imagina: alguns ambicionam estar no seu lugar e chamam-lhe “felicidade conjugal”, outros fogem com medo de morrer de tédio. A verdade é que, por mais que haja harmonia no casal, o indivíduo está sempre em ebulição e eternamente insatisfeito. Muitas das personagens desta série (cada episódio conta uma história diferente, sem continuidade) estão simplesmente aborrecidas e acabam por inventar problemas conjugais ainda que nunca mudem a sua atitude extremamente blasé (característica do mumblecore, um tipo de direcção de actores naturalista que desdramatiza qualquer diálogo). Se leu um estudo recente na internet que lhe baixou a auto-estima ou se quer fazer uma ménage à trois sem sair da sua zona de conforto, esta série é para si. (De Joe Swanberg — Netflix)

Se é casado com uma pessoa do sexo oposto, mas tem olhado para o seu/sua amigo/a mais próximo/a com outros olhos: “Grace & Frankie”

Esta série cómica com Jane Fonda, Lily Tomlin, Martin Sheen e Sam Waterston diz-nos que nunca é tarde para lutarmos pelo nosso amor, mesmo que isso implique separarmo-nos das nossas mulheres para assumirmos, aos 70 anos, uma relação amorosa com o nosso sócio. Assim começa o primeiro episódio de Grace & Frankie: com um jantar a quatro em que os homens dizem às suas respectivas mulheres que se querem divorciar para ficar um com o outro, depois de 20 anos a esconder a sua paixão. Nunca é tarde mas, podendo, não perca tempo. (De Marta Kauffman e Howard J. Morris — Netflix)

Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3.