Até há relativamente pouco tempo podia usar-se a ementa de qualquer restaurante de alta cozinha para fazer aquilo que os povos anglófonos designam por drinking game (jogo de beber não soa tão bem): um penalty por cada menção a vieiras, foie gras, pregado ou lavagante. Talvez não se embebedassem os participantes — até porque neste contexto os copos teriam de se encher com champanhe — mas uma coisa é certa: ninguém ficaria com a boca seca.

A culpa não morre solteira nem à fome. É dos cânones. Da escola francesa. Do hábito, no fundo. Mas o paradigma está a mudar e nos tempos que correm já não vai faltando quem queira desafiar esses mesmos cânones, abandonar a escola francesa ou despir o hábito. Isto é importante por três razões: as cozinhas ganham em criatividade, os clientes em variedade e o ambiente em sustentabilidade.

_MG_09683 copy

Cavacos, estes de comer e não de governar, uma das espécies que fizeram parte dos menus do Mar Adentro. (foto: © Paulo Barata)

Fixemo-nos neste último ponto. Se todos os chefs do mundo decidissem servir vieiras todos os dias, em todos os meses do ano, depressa a espécie se tornaria insustentável, mesmo recorrendo à aquacultura. Daí ser necessário alertar quem desenha menus e concebe pratos para a necessidade de se respeitar a vontade das marés e de ter flexibilidade para trabalhar apenas com o que os pescadores conseguem trazer até terra, de preferência sem recorrer a técnicas nocivas para os ecossistemas, como o arrasto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi esse o mote do recente Mar Adentro, festival organizado pela Amuse Bouche com o contributo precioso de Pedro Bastos (da Nutrifresco), especialista em descobrir e levar às cozinhas espécies pouco conhecidas ou valorizadas, e de oito reputados chefs nacionais, que ficaram responsáveis por confecionar dois jantares ao sabor do mar.

Cozinhar ao sabor do mar?

O desafio era simples: os chefs só podiam utilizar as espécies trazidas por Pedro Bastos até ao palco do evento — o restaurante Vista, do hotel Bela Vista, na Praia da Rocha –, respeitando a sazonabilidade e a sustentabilidade: nada de robalos, carabineiros, pregados nem de outros peixes e mariscos demasiado vistos, pescados e provados. Para tornar tudo ainda mais interessante, só no próprio dia do evento é que foram informados do que viera à rede.

_MG_09925 copy

Os jantares aconteceram no restaurante Vista, do hotel Bela Vista, na Praia da Rocha, em Portimão. (foto: © Paulo Barata)

E não faltaram surpresas. A maioria dos presentes desconhecia dois bivalves que faziam parte desse lote: taralhão e pé-de-burro. O primeiro, a que os espanhóis chamam navallón, é, explicou Pedro Bastos, um “excelente substituto para as vieiras”. Mais: enquanto no Canadá, disse, “chega a custar 300 dólares o quilo”, por estas bandas é sobretudo utilizado pelos pescadores como isco ou para feijoadas pós-faina. Já o pé-de-burro, um híbrido amêijoa-berbigão é conhecido em Itália como il tartufo di mare, a trufa do mar. E em Portugal? Só o nome faz uns quantos perderem o apetite.

Na mesa disposta no exterior do restaurante, ainda antes do primeiro jantar, havia ainda outras espécies. Por exemplo, cracas vindas dos Açores. “Trouxemo-las porque os percebes da Costa Vicentina estão em período de defeso até 15 de dezembro. Têm um sabor mais delicado porque a carne está mais protegida do mar”, justificou Pedro Bastos, que elogiou a carne de dois pequenos tunídeos — peixes da família do atum — o serrajão e o judeu, por ser “mais delicada e menos seca que a do atum-rabilho, que está a ser dizimado pela procura dos restaurantes japoneses”.

_MG_00255 copy

Pedro Bastos junto aos peixes e mariscos que trouxe para o evento.
(foto: © Paulo Barata)

“Porque comemos tanto robalo, pregado e tão pouca pescada?”, questionou o especialista enquanto mostrava um exemplar da espécie. “Por causa das nossas mães, que nos obrigavam a comê-la cozida como castigo!”, alguém arriscou na plateia. Talvez, mas não só. Mais uma vez, a influência francesa fez com que muitos optassem em exclusivo por outros peixes, mais raros na nossa costa, ignorando o potencial da pescada.

À mesa

Coube ao anfitrião João Oliveira, chef do Vista, trabalhar o taralhão, que serviu com trompetas da morte, micro-vegetais e um caldo de caril verde, e o pé-de-burro, apresentado cru, para comer como se de uma ostra se tratasse. Já Alexandre Silva (Loco) mostrou que o serrajão também dá bom sashimi antes de levar à mesa um salmonete pescado mesmo em frente ao hotel, regado com caldo de tomate. João Rodrigues (Feitoria) transformou as cracas num snack apelativo e, depois, conjugou lula e amêijoa com um caldo de sargaço que podia engarrafar e vender, aromatizando a criação com limão mão-de-buda, um citrino invulgar no formato — assemelha-se a um molho de dedos compridos amarelos. No primeiro jantar participaram ainda Rui Silvestre (Bon Bon) e Arnaldo Azevedo (Palco), que trabalharam, respetivamente, pescada (com um rissol de mexilhão e funcho) e encharéu (com cavacos, aipo fumado e chlorella).

_MG_00098 copy

João Oliveira apresentou o taralhão com trompetas da morte, micro vegetais e caldo de caril verde. Ao lado, o pé-de-burro. (foto: © Paulo Barata)

A festa continuou no dia seguinte ao almoço, já com presença dos chefs convidados para a segunda noite (Leonel Pereira, do São Gabriel, Hugo Nascimento, da Tasca da Esquina e o pasteleiro Carlos Fernandes, do Loco). Nas margens da Ria de Alvor, Manuel Maldonado (do projeto Ostraria), mostrou como aplicar os mesmos princípios num contexto mais barbecue e menos fine dining. Já não mandou o mar, mandou a ria, com as respetivas ostras em lugar de destaque. E a serra de Monchique deu uma ajudinha, oferecendo um javali cuja carne tenra não pôs em causa o nome do evento. Até porque a mensagem já tinha passado.

O Observador viajou a convite da organização do Mar Adentro.