Há muitas formas de representar a poesia. Muitas são meras manobras de diversão, onde a palavra e o gesto dos poetas se perdem no desejo de glória dos seus “dezidores”. O contrário disso é a poesia usada como argamassa para construir um espetáculo que permite ao público encontrar-se com a obra dos poetas mas ir além dela. É o caso destes dois trabalhos de palco que se estrearam esta semana em Lisboa e que nos trazem Mário Cesariny e Herberto Helder; os “dois grandes rios” da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, como lhes chamou João Barrento numa recente entrevista ao Observador. A Cornucópia abriu as portas a “Máquina de Emaranhar Paisagens”, um solo de teatro pelo ator Dinarte Branco; e o Teatro do Bairro está, desde dia 26 a apresentar “O Jovem Mágico”, uma peça polifónica encenada por António Pires.

Nobilíssima visão de Cesariny por António Pires

Depois de anos de vida dura, apresentações semanais na PIDE a dizer que andava a portar-se bem, depois de pertencer aos ostracizados pelo meio literário bem pensante e com preocupações de “gente séria”, os amigos do povo. Depois de lutar contra a impotência das palavras até fazer deslocar a tectónica da poesia portuguesa, depois de lhe caírem os dentes, de usar perucas de mulher, de muitos quartos, muitos cigarros irónicos ou desesperados, Cesariny tornou-se uma espécie de santo no altar das novas gerações de poetas e aspirantes. Presença constante das tertúlias de poesia, com direito a efígie estampada em T-shirts, dito e redito num tom grandiloquente que haveria de o fazer rir. “Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?/ Porque é que querem fazer passar para o meu corpo/ uma caricatura a todos os títulos porca?“, ouvimo-lo perguntar num dos poemas de A Pena Capital.

Maria João Luís num tour de force com as palavras de Cesariny

Maria João Luís num tour de force com as palavras de Cesariny. Foto Maria Antunes para Teatro do Bairro.

Por isso é absolutamente obrigatório ir ver “O Jovem Mágico”, a nobilíssima visão de António Pires/Hugo Mestre Amaro, que não apenas dessacraliza Cesariny como nos devolve a força perturbadora, carnal, a ironia desconcertante, a iconoclastia, a ternura sufocante da sua poesia, num espetáculo que é também uma performance que abala as nossas imagens, as nossas certezas sobre a obra do poeta e pintor surrealista. Quando passam 10 anos sobre a sua morte, o poeta pode ser encontrado vivo até dia 2o de Novembro no Teatro do Bairro, em Lisboa. De quarta a sábado às 21 e 30 e domingos às 17 horas.

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Numa ópera surrealista para sete atores, o encenador António Pires dá-nos uma lição de como pode a linguagem do teatro fundir-se com a da poesia num movimento dinâmico e evolutivo. Certamente nunca mais leremos Cesariny da mesma forma depois de o ouvirmos recriado magistralmente por Maria João Luís, que aqui se afirma de novo como uma das nossas melhores atrizes. Nunca o estafado poema You Are Welcome to Elsinore se mostrou em toda a sua dolorosa impotência, nunca foi tão clara a consciência do poeta da impossibilidade de as palavras se ultrapassarem a si mesmas. E o menos conhecido Poliptika de Maria Klophas dita Mãe dos Homens (eixo central do espetáculo) deslumbra-nos com a capacidade orquestral do verbo “cesarinesco” explodindo em mil cambiantes de ironia, solidão, crítica política, sátira religiosa, tantas coisas ditas e não ditas, tantas coisas além, muito além do que é dito (um trabalho sobre a linguagem muito comum aos surrealistas e seus efluentes).

António Pires confessa que a poesia, pela sua liberdade intrínseca, pelos jogos de linguagem que comporta, pela forma como nela fluem ideias, comédias, intimidades, cores, inconscientes, é o tipo de texto que mais se adequa ao teatro que gosta de fazer. E esta já é a quarta peça em que tem como centro os poetas e a poesia. Antes foram Ana Hatherly, Shakespeare, Adília Lopes. Agora é Cesariny. Haverá outros mas não diz quais. E dá uma daquelas gargalhadas.

Diz ainda que o seu teatro coreográfico rejeita a narrativa convencional, naturalista, realista. Interessa-lhe re(a)presentar “o conteúdo”. Isto é, apresentar não apenas para “dar a ver” mas para “dar de novo a perceção”, para misturar as múltiplas camadas do dito e do não dito, das imagens cristalizadas e das imagens latentes e com elas fazer um novo estrato desse grande palimpsesto que é a arte.

A ópera em palavras Poliptika de Maria Klophas dita Mãe dos Homens, Pena Capital, Um Auto para Jerusalém, O Regresso de Ulisses, Pranto Sobre Dois Temas Gratos aos Portugueses, O Jovem Mágico, Autoractor, Uma certa Quantidade são apenas alguns dos 20 poemas usados neste espetáculo, onde Mário Cesariny nos é devolvido como homem e não como mito, num quarto, em muitos quartos que são também portos à beira Tejo, bares da Lisboa dos anos 50 e 60, marinheiros, corpos belos, homens e as suas personas. Ate um tal de Fernandes Pessoas que vive com quatro homens na cabeça aparece por lá. Mas, como avisa António Pires: “nesta peça não há personagens, há palavras e as pessoas que nascem a partir delas”.

 Graciano Dias . A beleza, a juventude, o corpo, o desejo deste O Jovem Mágico.

O ator Graciano Dias: a beleza, a juventude, o corpo, o desejo deste O Jovem Mágico. Foto Maria Antunes para o Teatro do Bairro

Cesariny, o homem-poeta deambula pelo corpo dos sete atores sempre transfigurado, sempre transfigurador. Nunca há nesta peça uma tentativa de se colar àquele que terá sido Mário Cesariny, nem àquilo que seria a sua poesia se ela fosse apenas um objeto estável, tangível. Não esperem pois os espetadores encontrar n’ “O Jovem Mágico”, o Mário Cesariny que existe na sua cabeça ou nas suas leituras. Provocador como convém, e como tanta falta faz na vida cultural deste país, António Pires traz-nos a sua própria visão corajosa, cómica, caleidoscópica do poeta que fundou o Movimento Surrealista Português, em 1947, que há 60 anos, em 1956, passou a sentar-se nas mesas do Café Gelo e que morreu no dia 26 de novembro de 2006.

A Máquina Herberto por Dinarte Branco

Dinarte Branco num espetaculo a solo para poemas de Herberto Helder

Dinarte Branco num espetáculo a solo para poemas de Herberto Helder

Noutro palco, noutra dimensão da existência e das palavras, o ator Dinarte Branco lança-nos o desafio de ouvir e ver a poesia de Herberto Helder transposta para o palco. Longe, muito longe da vertigem de Cesariny, o fogo gelado de um espetáculo cru, austero, que trabalha no limite entre o aprisionamento do poeta e da sua poesia numa aura de mitificação altamente nefasta (e sempre muito grata a quem não compreende que poesia é metamorfose) e a libertação de toda a potência criadora da lírica herbertiana, da força da sua linguagem barroca, das suas impossíveis máquinas de emaranhar paisagens.

É precisamente o poema “Máquina de Emaranhar Paisagens”, um exercício bastante surrealista, que dá titulo a esta peça onde são coligidos 9 poemas e o conto “Duas pessoas de Os Passos em Volta”.

AMEP -37

A peça, que fica em cena apenas até dia 6 de novembro, tem a generosidade de não nos pretender impor uma leitura ou um imaginário à volta de Herberto Helder. Mais: Dinarte Branco põe-nos a sua oficina à vista, nunca deixa de mostrar na voz e no corpo as dificuldades que esta poesia lhe impõem, nos impõem. O seu constrangimento, a sua luta contra o caudal da poesia de HH, acabam por ser nódulo onde texto e teatro se encontram e se transformam numa coisa singular.