Em 1956, saiu em Inglaterra um livro intitulado “O Terceiro Olho”, supostamente escrito por um monge tibetano com poderes místicos (caso de uma “terceira visão” que lhe permitia ser clarividente) chamado Lobsang Rampa, que se vendeu como pão quente por toda a parte. Nada convencido, o explorador e tibetólogo austríaco Heinrich Harrer contratou um detetive particular, que descobriu que Lobsang Rampa era na realidade um canalizador de província chamado Cyril Hoskin, que nunca tinha posto os pés no Tibete nem falava tibetano. Desmascarado, Hoskin alegou que o seu corpo tinha sido ocupado pelo espírito do tal monge, e apesar de ter sido desacreditado por vários especialistas em história, cultura e religião do Tibete, e pelo próprio Dalai Lama, continuou a escrever e a vender misticismo de pacotilha até à sua morte, em 1981.

[Veja o “trailer” de “Doutor Estranho”]

O novo filme do “Universo Marvel”, “Doutor Estranho”, realizado e co-escrito por Scott Derrickson, e baseado no “comic” homónimo de Steve Ditko criado em 1963, parece ter saído direitinho de um livro de Lobsang Rampa, com uns acrescentos de Harry Potter, uma camada de verniz New Age e uma demão de psicadelismo. Benedict Cumberbatch interpreta o clínico do título, um brilhante mas arrogante e egocêntrico neurocirurgião que perde o uso das mãos após um desastre de automóvel que deixaria qualquer um reduzido a carne picada. Desesperado, ruma ao Tibete, onde entra em contacto com um grupo de mestres feiticeiros liderados pela Anciã (Tilda Swinton de cabeça à Yul Brynner), descobre em si poderes sobrenaturais insuspeitados e dimensões do universo nunca sonhadas, aprende artes marciais mágicas e enfrenta as forças mais negras do universo.

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[Veja entrevistas com o realizador e com os atores]

Já tínhamos os super-heróis da força bruta da Marvel, caso dos Vingadores. Agora, em “Doutor Estranho”, temos os super-heróis da força mental. Lobsang Rampa teria aplaudido. Seguindo fielmente a matriz narrativa simplista dos filmes do género – personagens dotadas de superpoderes combatem uma poderosa ameaça maléfica que quer destruir a Terra –, a fita é uma portentosa e “kitsch” mixorofada de conversa da treta pseudo-mística e neo-“espiritual” (está lá tudo, dos “corpos astrais” aos múltiplos planos do universo, passando pela abdicação da dimensão racional em favor da espiritual) e de efeitos especiais elefantinos. Que desta feita permitem a heróis e vilões (estes, liderados por Mads Mikkelsen num mestre que escolheu o “lado negro” – onde é que eu já ouvi isto?) dobrar o espaço e a matéria como se fossem papel, e virar cidades inteiras do avesso (nada que, em Lisboa, António Costa, Fernando Medina e Manuel Salgado não tenham já feito, e sem superpoderes místicos).

[Veja a origem de “Doutor Estranho”]

No final deste festival de espectacularidade tão bombástica como bocejante, pontuado por tiradas de espiritualidade do melhor recorte “lobsangrampiano”, o nosso intrépido médico, que passou a usar uma vistosa capa levitacional que lhe dá o aspeto de membro de um grupo de “glam rock” dos anos 70, aparece a conversar com um Thor vestido à civil e a emborcar cerveja. O que prenuncia que num dos próximos filmes da Marvel teremos o inevitável encontro entre os super-heróis da mocada rija e os super-heróis da pancadaria espiritual. Eu reservo-me o direito de preferir, a este “Doutor Estranho”, os mais prosaicos e materialistas, mas infinitamente mais interessantes, “Doutor House” e “Doutor Estranhoamor”.