Passaram três anos desde que a Casa da Liberdade – Mário Cesariny abriu no coração de Alfama, num espaço contíguo à Perve Galeria, com um único objetivo: divulgar a obra do pintor e poeta que lhe dá nome. De modo a assinalar a data, que quase coincide com o aniversário da morte de Cesariny, o espaço inaugurou esta quarta-feira uma exposição evocativa da obra do surrealista. Evocando Mário Cesariny traça o percurso de Cesariny, pintor, mas também a história da própria Casa da Liberdade, cujo nascimento foi acompanhado de perto pelo artista.

Nascido no papel em 2013, o projeto chamado Casa da Liberdade foi criado muito antes, quando “o Mário” ainda era vivo. Para Carlos Cabral Nunes, diretor do espaço, é por isso que “esta evocação” também tem a ver um pouco com isto”. “Tem a ver com a nossa relação desde 2005, momento em que adquirimos o edifício. Vai narrando as coisas que fizemos em torno do Cesariny e dos surrealistas e que esta exposição evoca. É uma relação longa que não se cinge apenas a estes três anos.”

A diversidade de materiais que inclui a exposição, patente até 17 de dezembro, mostra isso. Há desenhos, pinturas, poemas-objeto, colagens, esculturas, fotografias e até correspondência — objetos que cobrem um intervalo temporal que vai desde a década de 1940, altura em que foram criados o grupo e anti-grupo surrealistas, até aos anos 2000. Entre as cartas expostas, conta-se as missivas trocadas com Yoko Ono a propósito de uma obra feita por Cesariny em memória de John Lennon por altura do seu assassinato, em 1980.

Momentos da vida de um pintor que também foi poeta

Além do espólio que se encontra regularmente exposto na Casa da Liberdade (que inclui a famosa porta de casa do pintor), Evocando Mário Cesariny inclui várias obras que geralmente não se encontram acessíveis ao público. Entre estas contam-se algumas das “primeiras obras”, que não eram apresentadas desde a exposição de homenagem aos surrealistas realizada na Perve Galeria quando Cesariny era ainda vivo.

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Uma dessas peças é “Maldoror”, obra emblemática realizada em 1947, em Paris, depois de Cesariny ter visitado o francês André Breton, fundador do movimento surrealista e cuja influência o levou a participar na criação do Grupo Surrealista de Lisboa e, mais tarde, na no anti-grupo “Os Surrealistas”. Outras das obras em exposição é “Everything to Learn”. Além de se tratar de uma homenagem ao poeta inglês William Blake (realizada em Londres no final da década de 1960), a peça, de técnica mista, tem uma outra particularidade — o verso encontra-se recheado de frases escritas pela mão do próprio Cesariny. Uma delas é dedicada ao ex-ministro da Cultura, João Soares, e diz apenas: “Para o meu amigo João Soares”.

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“Ele às vezes dava as obras e depois voltava a pedi-las porque tinha muitas saudades delas”, contou o diretor da Casa da Liberdade. “Era uma forma de liberdade, de poder oferecer e ‘desoferecer’. As obras nunca deixavam de ser dele de facto.” O poeta fez isso com “muita gente”, e houve até quem se sentisse “ofendidíssimo”. Mas Cesariny nunca fez isso com má intenção. É como se, “enquanto esteve vivo, as obras, estivessem onde estivessem, continuavam a ser dele”.

Além das peças de arte, Evocando Mário Cesariny terá também em exibição o documentário “Momentos na Vida de Um Poeta”, do surrealista e artistas plástico Carlos Calvet, que tem Cesariny como protagonista. “É um filme extraordinário dos anos 50, que segue a lógica dos filmes mudos porque ele só tinha uma câmara”, explicou Carlos Cabral Nunes. Raramente exibido, Momentos na Vida de um Poeta conta ainda com a participação de João Rodrigues, ilustrador que se suicidou a 10 de maio de 1971 atirando-se do terceiro andar da sua residência na Avenida Almirante Reis em Lisboa depois de problemas com a PIDE.

A arte de Regina Frank também está presente

Mas as comemorações dos três anos da Casa da Liberdade não se ficam por aqui. Foi também inaugurada esta quarta-feira a exposição The Art ist Present (em português, A Arte está Presente), uma mostra antológica e transversal do trabalho da artista alemã Regina Frank. Com mais de 20 anos de carreira, Frank já colaborou com artistas como John Cage e Marina Abramović, tendo exposto as suas obras em instituições como o New Museum of Contemporary Art de Nova York ou o San Diego Museum of Art.

Residente em Portugal desde 2007, The Art ist Present é a primeira exposição portuguesa a mostrar as diferentes facetas da artista — desde o desenho à pintura, passando pela performance, o seu núcleo central. De acordo com Carlos Cabral Nunes, a mostra é “uma espécie de súmula”. “Ela tem várias décadas de produção artística e uma retrospetiva seria uma coisa mais densa. Aqui, contámos apenas com as obras que ela conservou. Ela tem o mérito de ter conservado muita coisa, de todos os períodos e fases, o que permite fazer uma espécie de cartão-de-visita da autora.”

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Este “cartão-de-visita”, patente na Perve Galeria até 17 de novembro, inclui trabalhos antigos mas também recentes, como é o caso de “iLAND”, a recriação em têxtil de uma peça mais antiga que explora temas relacionado com o mundo moderno. “É uma exposição transversal”, garantiu o diretor da Casa da Liberdade, salientando que o caso de Regina Frank devia “fazer-nos — nós, portugueses — refletir”.

“Ela é paradigmática de uma atitude que temos em relação aos artistas que decidem fixar residência em Portugal. Na maioria dos casos, as pessoas tratam o facto de terem escolhido Portugal quase como sinónimo de não serem grandes autores.” Uma atitude completamente contrária à de Cesariny e que, para Carlos Cabral Nunes, está longe de ser verdade.