Finalmente vamos poder dormir descansados. Desde que em março ouvimos “Doing It Do Death”, single de avanço para aquilo que seria – e será, claro, cuidado com os tempos verbais – um dos discos do ano que sabíamos que o teríamos que dançar. Ash & Ice chegou a Lisboa cheio de estilo e “Heart of a Dog” é a escolha ideal para dar início ao rebuliço rock. Cá estamos nós, feitos cachorros à espera do osso, se for caso disso sentamos, quem sabe rebolamos, só para isto não acabar. O rock’n’roll também é isto: sofrer por antecipação sem deixar de achar todo o instante incrível. E os The Kills são tudo isso e muito mais.

Assim que sobem ao palco do Coliseu dos Recreios regressa a roda-viva das emoções. Quem já chumbou a esta cadeira, quem é repetente em Kills sabe perfeitamente do que falamos: a árdua tarefa de escolher entre os movimentos sexy e rockeiros de Alison Mosshart e a guitarra mandona de Jamie Hince. Não há dedos que fiquem entalados em carros nem múltiplas operações que façam este homem tocar menos bem, arriscar tirar os ouvidos daquelas cordas é saber que lá voltaremos em menos de nada.

Ash & Ice é um disco que aponta a banda noutra direção, há texturas menos rock, soluções que partem de energias mais eletrónicas ou até R&B, tudo certo. Tal como a certeza de que aqui, diante deste Coliseu bastante composto, isso pode ser tudo verdade, mas os Kills não sabem ser de outra maneira. É rock, sempre será, e ninguém parece querer que mudem. Deixem-se estar que estão no ponto. Em nosso redor, pelo menos, está tudo como previsto: aquele abanar de perna que o fanático de rock tem sempre pronto. Em The Kills até o previsível é bom de consumir.

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The Kills, Coliseu dos Recreios, Lisboa. HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Tanto pedimos que não podia demorar muito mais: “Doing It To Death” invoca a dança dos mortos. Por uns minutos viramos todos cadáveres dançantes a caminho da cova. Se é para ser moribundo e desgraçado que seja com os Kills, é sinal de que vamos bem, ainda que o caminho seja dúbio. É evidente que este foi o apogeu da noite, pelo menos até aqui. As feras escondidas de corrente na cintura saíram todas da toca. Algo que parece prosseguir, as pernas ganharam leveza, as palmas tornam-se mais insistentes.

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A omelete de Ash & Ice vai-se desfazendo, apenas no sentido em que começam a aparecer temas de outros discos do duo. Só por isso mesmo, porque estes ovos têm todos prémio. Ou por outra, são de galinha do campo, aves raras e valiosas, obviamente. Sobretudo quando é espécie que tanto agrada aos portugueses, está visto que esta capoeira de rock é mais uma prova desse amor. E se a coisa é em 2016 menos de garagem – qualquer banda que cresce vai perdendo inocência, largando esses arrumos – não significa que tenha perdido a gravilha, o noise na guitarra de Hince está cá sempre.

E ainda que estejamos em época de burburinho, de letras por aprender, há sempre espaço para os clássicos. Há direitos e deveres, os Kills, como pessoas sérias que são, sabem que têm de dar este miminho: “Future Starts Slow”. Canta-se: “You can sing / You can flail / I don’t mind”. Se nos permitirem fazemos nossas as suas palavras. Clássico que é clássico não tem hora marcada, pode aparecer quando quiser, é só tocar, mesmo para gente contracorrente, com uma visão algo anti-indústria.

A meio metro – sim, que este rock não permite ouvir nada a maior distância do que isso, sobretudo se não for entre as transições das faixas – ouve-se a ingenuidade de uma provável caloira: “Porque é que eles não falam connosco?”. Ora, pois, se sabemos ao que vimos sabemos que os Kills não são de grandes conversas nem, a nosso ver, seria desejável. Deixemo-los fazer o que sabem, a rockar é que eles estão bem.

E nós idem. É impossível dissociar este final de concerto trippy, meio alucinogénico, de uma relação amorosa. Seguramente atribulada, com discussões e afetos sempre expansivos. Estes dois foram é será rock à primeira vista. De tal forma que no encore – sim os Kills também fazem disso – temos o privilégio de ver Mosshart a embalar-nos de guitarra acústica ao peito. E sim, também houve isqueiro em riste durante este concerto. O mundo está louco. Que esteja, desde que os Kills estejam por perto.