As sobrancelhas levantadas dão-lhe um ar pouco amigável, mas Jerzy Skolimowski mostrou-se paciente e interessado durante a entrevista. Aceitou falar com o Observador e passar em revista momentos de uma carreira com mais de 50 anos.

O realizador polaco está em Lisboa para participar no Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFEST), que decorre até domingo, dia 13. É membro do júri e tem direito a uma retrospetiva quase integral que decorre por estes dias. Fomos ao seu encontro num hotel do Estoril.

Nascido em 1938 em Lódz, a terceira maior cidade da Polónia, é considerado o pai da “Nouvelle Vague” polaca. Estudou etnografia na Universidade de Varsóvia e cinema na conhecida Escola de Cinema de Lódz. Foi Urso de Ouro no Festival de Berlim com Le Départ (1967) e recebeu o Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes por O Uivo (1978).

Além de realizador, é também ator, escritor e pintor. Só em meados dos anos 90 fez as primeiras exposições e hoje sente-se mais artista plástico do que cineasta. Foi também por isso que decidiu isolar-se na floresta.

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[trailer de “O Uivo”, 1978]

Vive perto de Varsóvia numa casa de campo antiga. Porque é que decidiu isolar-se na floresta?
Durante muitos anos, vivi em Malibu, na Califórnia. Tinha uma casa linda, com uma vista de 180 graus sobre o mar, uma vista incrível, sem rival. Quando decidi sair da Califórnia, comecei à procura de um ambiente completamente diferente. Pensei que talvez o interior da floresta, perto dos animais, fosse o ideal. Tive a sorte de encontrar uma velha casa de campo, do século XIX, usada como albergue de caçadores. Está longe da civilização. Foi uma boa mudança.

Considera importante estar longe da civilização?
Preciso de um ambiente pacífico para o meu trabalho como pintor. Pintar é uma atividade “zen”, um ato de criação completamente diferente do de fazer filmes. Fazer filmes é como ir para a fábrica: entrar às sete da manhã, controlar tudo, manipular as pessoas, levá-las a fazer coisas. Pintar é quase como um capricho, tenho de sentir, tenho mesmo de querer fazer, de outro modo não funciona. Sou artista a 100% quando pinto, por isso preciso de uma atmosfera de paz.

Não se sente artista a 100% quando está a realizar um filme?
A 100% não… Quer dizer, parcialmente, sim. Nas filmagens vivemos uma espécie de jogo, o jogo de trabalhar com as pessoas. É preciso manipulá-las, por vezes tratá-las mal, castigá-las. Outras vezes temos de ser diplomáticos. Percebe? Para alcançar alguma coisa. São ferramentas completamente diferentes. Quando se pinta, está-se sozinho com a tela, não há mais ninguém a interferir, para ajudar, para sugerir. Não há produtores acima de nós a pedir que poupemos na cor amarela porque é muito cara. Estou brincar, claro, mas é para se perceber.

Quando diz que tem de manipular as pessoas com quem trabalha está a falar dos atores?
Não só, não só. Toda a equipa. Temos de saber usar as pessoas, tirar o que queremos das pessoas. Às vezes, tentam dar-nos alguma coisa e entendemos que não serve, aí é preciso recusar frontalmente ou manobrar a situação a nosso favor.

Isso quer dizer que quando termina uma rodagem está exausto.
Claro, é um processo esgotante. Pintar também pode ser. Quando pinto, o tempo pára. Às vezes pinto durante meia hora, outras vezes fico dez horas seguidas. Não há tempo, não há relógio.

Os críticos costumam elogiar a sua capacidade de dirigir bem os atores. É uma tarefa complicada ou sai-lhe naturalmente?
Acho que é uma coisa natural. Eu próprio já fui ator, embora não tenha qualquer formação. Mas de tempos a tempos, atuo, conheço a profissão, sei o que se faz de ambos os lados, isso dá-me alguma vantagem face a outros realizadores que não são atores. Não têm a experiência de estar frente à câmara.

Viveu muitos anos em Londres e em Los Angeles…
Estive em Santa Mónica e Malibu. E também fiz dois filmes em Itália, o que, tudo junto, dá mais de um ano, estive mais de ano a viver em Itália. Fiz filmes na Bélgica, na Checoslováquia, na Alemanha. Estive mais de um ano a viver na Alemanha. Provavelmente, estive metade da vida longe da Polónia.

Tudo começou em 1967, quando teve de sair do seu país por razões políticas. Na altura tinha realizado Hands Up!
Era um libelo político contra o estalinismo. O regime comunista haveria de durar ainda muitos anos na Polónia. Acho que fui longe de mais demasiado cedo. Não tinha retaguarda. Se houvesse naquela altura o Solidariedade [união de sindicatos liderada por Lech Walesa], ou uma organização qualquer atrás de mim, talvez tivesse conseguido. Estava completamente sozinho, era uma voz sozinha contra a propaganda oficial. Foi demasiado cedo.

[excerto de “Hands Up!”]

https://www.youtube.com/watch?v=9Wex4DZ3pLM

O poder político sugeriu-lhe que saísse da Polónia ou achou que era o melhor caminho?
Não, não, eles empurraram-me para fora. Fizeram-me saber que os meus filmes tinham deixado de ser bem-vindos na Polónia. “Ou mudas de trabalho ou mudas de país.”

Foi nessa altura que se mudou para Londres?
A princípio, sim, depois tive oportunidade de ir para Itália rodar Aventuras de Gerard [1970]. Foi uma enorme produção de Hollywood, um dos maiores filmes feitos na Europa daquela época, com grandes estrelas como Claudia Cardinale, que estava no máximo esplendor. Eu não estava preparado para fazer um filme daqueles.

Era inexperiente?
Não, mas eu pertencia ao movimento “Nouvelle Vague”, era quase um amador, não tinha sido um grande estudante de cinema. Não tinha ido às aulas, estava interessado em usar o pouco que sabia para começar a filmar, ainda era estudante quando realizei o primeiro filme [Niewinni Czarodzieje, 1960]. Tinha falhas na minha formação como realizador e senti muito isso quando fiz Aventuras de Gerard.

Gerard

“Aventuras de Gerard” (1970)

Um realizador tem de passar por uma escola de cinema?
Não é essencial, mas ajuda. Era estudante, cometi o erro… Quer dizer, não sei se foi um erro, poderia ter feito as duas coisas: ir às aulas todas e filmar ao mesmo tempo. Escolhi filmar e acabei por deixar a escola.

É depois de Aventuras de Gerard que se estabelece definitivamente em Inglaterra?
Sim, até porque a pós-produção foi feita em Londres.

Como era Londres nos anos 70?
Foi uma época formidável. Era mesmo a famosa “Swinging London”. Conheci pessoas muito interessantes. Como fiz parte do círculo de Roman Polanski [que tinha frequentado a mesma escola de cinema e cujo filme Faca na Água, de 1962, teve argumento de Skolimowski] tive acesso à elite artística inglesa. Conheci os Beatles, os Rolling Stones, pintores famosos, fotógrafos como o David Bailey.

Ficou deslumbrado?
Nem por isso, até porque me tornei parte daquilo rapidamente. Comecei a ser reconhecido como um realizador de Londres. Logo a seguir fiz A Adolescente Perversa [Deep End, 1970], que se tornou muito conhecido.

O seu nome está para sempre associado ao início da “Nouvelle Vague” na Polónia, mas há quem diga que esta linguagem nunca existiu no seu país nos mesmos termos que em França. Concorda?
Acho que o tema da linguagem utilizada não é muito importante, o que contava, na altura, era a atitude. Aquilo a que se chama “Nouvelle Vague” é uma forma de resistência ao cinema paternalista, às formas velhas de fazer cinema. O uso livre da câmara, muita improvisação… Isso é que eram os aspetos importantes da “Nouvelle Vague” e foi o que fiz na Polónia, praticamente era o único a fazê-lo naquela época. Alguns anos depois de ter deixado o país, havia já uma nova… não diria geração, mas um novo grupo de jovens cineastas que seguiam esta atitude.

Podemos dizer que ainda hoje filma segundo os princípios da “Nouvelle Vague”?
Não, uma vez que não consegui fazer Aventuras de Gerard como deveria…. Aquilo teria de ter sido um filme clássico, mas eu tentava ainda aplicar-lhe a “Nouvelle Vague”, o que não funcionou e por isso não é um bom filme. A seguir, quando fiz A Adolescente Perversa já tinha aprendido com os erros. Esse também foi filmado em Itália. Acho que fiquei entre a “Nouvelle Vague” e o estilo clássico do cinema. E funcionou, é um dos meus melhores filmes.

[trailer de “A Adolescente Perversa”, 1970]

Sendo a Polónia um país muito fechado durante a era comunista, como é que teve acesso ao cinema francês?
Na escola de cinema não tínhamos acesso total, mas uma pequena amostra do que se passava no mundo. Penso que terei visto o primeiro de Truffaut, Os Quatrocentos Golpes [1959]. Já não me lembro se foi na Polónia que vi O Acossado [1960], de Godard. Devo ter visto um ou dois filmes franceses naquela época.

Lembra-se do que pensou quando viu Truffaut?
Foi fascinante. Mas já estava a fazer os meus próprios filmes e pensei: “Bom, eles estão a fazer o mesmo que eu.”

Quer dizer que considera ter criado essa linguagem antes de ter tido acesso aos realizadores da “Nouvelle Vague” francesa?
Acredito que sim. A “Nouvelle Vague” representa a liberdade de espírito, um certo desprendimento na maneira de filmar, e naturalmente eu era desprendido com os meus filmes, como seria próprio de um estudante. Foi isso que aconteceu…

quem diga que nos seus filmes os desejos das personagens esbarram com a crueldade do mundo. Há temas recorrentes na sua obra?
Talvez isso esteja lá, sim, mas não como tema principal, essa atmosfera está espalhada. Penso que, sobretudo, apresento histórias individuais, os dramas pessoais dos protagonistas dos meus filmes. A questão do desejo versus crueldade pode estar presente como contexto.

Entre 1991 e 2008 não realizou qualquer filme, foi um longo silêncio. Chegou a pensar deixar o cinema?
Não, mas estava muito infeliz com 30 Door Key, que fiz em 1991, e achei que deveria parar por algum tempo e pensar. Nessa altura, dediquei-me a sério à pintura. Quando estava a filmar, não tinha tempo para pintar, e pintar é a minha verdadeira paixão. Não sabia se iria estar parado por três anos, quatro, mas por certo que não tinha planeado parar durante 16 ou 17 anos. Tive algumas propostas, mas nada que me entusiasmasse e me levasse a deixar outra vez a pintura.

Vai deixar a pintura nos próximos tempos?
Como sabe já fiz 11 Minutos [2015] há mais de um ano e sinto que ainda não consegui voltar a pintar. É preciso tempo. Ainda estou à espera de ficar “zen” outra vez.