Desde o início deste ano infernal que ele estava na minha cabeça – suponho que tenha acontecido com toda a gente. Desde que Bowie se foi, logo em Janeiro, então era porque, definitivamente, não havia imortais. Como Cohen já tinha a sua idade (essa terna expressão de um pudor tão classicamente português), por maioria de razão, poderia ser o próximo.

Depois, um a um, foi-se aguentando. Prince, George Martin e Gato Barbieri, também na música; Umberto Eco, Harper Lee e Imre Kertész na literatura; Dario Fo e Edward Albee no teatro; Alan Rickman e alguns dos maiores autores do nosso tempo no cinema: Ettore Scolla, Jacques Rivette, Cimino, Kiarostami, até Curtis Hanson; Zaha Hadid na arquitectura; Shimon Peres na política; Nicolau Breyner em tudo e mais alguma coisa desde que fosse espectáculo; Johan Cruyff e Muhammed Ali no desporto. Senhores, é como dizia o extraordinário dramaturgo e argumentista Aaron Sorkin há dois dias, em carta à filha e à mulher, a propósito da vitória de Trump: há alturas para usar este tipo de linguagem e esta é uma delas – puta que pariu. 2016 não é um ano; é uma doença.

Só há um tipo que sabe que vai estar vivo no réveillon: o Keith Richards. O resto é ir fazendo o seguro de vida enquanto é tempo. (Pessoalmente, estamos convencidos de que, em havendo juízo final, é o Keith quem vai falar pela espécie. Cristo regressa ao mundo, dá uma volta pelo pedaço só para se certificar de que já está mesmo tudo com os pés para a frente, e o Keith de repente sai de debaixo duma mesinha pé de galo a tocar o “You Can’t Always Get Want You Want”. Mas o tema do apocalipse pode ficar para outra crónica).

O senhor Leonard foi sobrevivendo a isto tudo e, a pouco e pouco, fui achando que ele, o verdadeiro duro (claro que tinha coração. Os duros de verdade têm coração – isso é que os torna duros e admiráveis. O que não tem coração é um frigorífico, e não há mérito algum na sua resistência ao sofrimento), ia não só sobreviver a 2016, como ajudar-nos a todos a ultrapassá-lo.

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A impressão parecia confirmar-se definitivamente há coisa de um mês: Cohen tinha disco novo. You Want it Darker. Belíssimo disco. Não uma coisa dum senhor de 82 anos a tentar fazer render o peixe, amealhar algum para os netos, já que a agente lhe desapareceu com os já célebres quatro milhões de dólares (eram dólares ou euros? Bom, era uma data de dinheiro). Aí estava: belíssimo disco novo, canções novinhas em folha para ouvir, fora as antigas, Cohen a dar-nos mimo, a nutrir-nos para aguentar até 31 de Dezembro. Se lançar um disco novo não garantia que estivesse aí para as curvas? Claro que garantia. O Bowie já tinha feito esse truque, e que bem feito, de ter o disco de despedida pronto para quando decidisse finar-se. Cohen não o faria outra vez. Até porque eram tão diferentes – eram? Bowie voltou para o planeta dele; Cohen foi, julgo, para o centro da Terra. Mas fez. Repetiu. Copiou o truque. Não queria acreditar. A notícia chegou de noite, princípio da madrugada. Boa hora para Cohen, boa hora para mim, boa hora para tantos de nós. Cohen não é das manhãs (apesar do fabuloso trabalho de Inês Meneses na Radar, na manhã seguinte), só das que se seguem às noites passadas em claro. Cohen é o candeeiro ou a vela, não o sol. A luz que cobre, não a que descobre.

Desde a madrugada de sexta-feira, já muita gente escreveu coisas muito bonitas sobre Cohen. Histórias pessoais ao som da música dele, não as prosas enciclopédicas e anódinas com que tantas vezes se enchem as páginas dos jornais para os epitáfios de quem se sabe que foi importante, mas não se conheceu. Não. Cohen, como Bowie, não era só importante; era íntimo. Lá de casa. Muito nosso. De todos nós. Multiplicado. Não como uma coisa para a multidão. Cohen era a colecção das nossas solidões. A canção que todos podíamos estar a cantar para dentro, achando sempre que, ao lado, ninguém a entendia como nós.

Não tenho nada a dizer que possa ser mais bonito do que aquilo que já tão bem se escreveu. Falo só do meu caso como quem liga para uma linha de ajuda e desabafa na ânsia de que isso baste para se sentir melhor. Em poucas palavras: para mim, Cohen sempre esteve lá, rodando no rádio ou na televisão da infância. Já era velho. Acho que sempre foi velho. Sim, claro. Era uma “father figure”, muito mais provocador e sarcástico do que o meu verdadeiro pai, mas um pai. Bowie e Prince só poderiam ser tios malucos. Cohen não. Até poderia ser um pai ausente, mas seria sempre um pai: referência e abrigo, para fugir e voltar. E é curioso, agora que penso nisso, sabendo que ele mesmo foi um órfão desde tão cedo.

Uma pessoa faz-se, não é, senhor Cohen? Quero acreditar que sim. É que a coisa mais difícil de aceitar nesta morte é que tenha vindo logo agora. É que o mundo está a precisar de pais. E, porém, talvez seja esta a única forma. O último acto de Leonard Cohen enquanto pai, porque só assim se cresce, ficando sozinho diante das sacanices da vida.

Foi de Cohen o único concerto que vi no Pavilhão Atlântico e em que, mesmo estando cá atrás, o som não pareceu merdoso. Foi de Cohen o único concerto em que chorei na vida (duas vezes. “Take this Waltz” e Hallelujah”). Foi de Cohen a voz que procurei durante 19 anos de cigarros. De Cohen a música a que regressava em qualquer noite de chuva, lá fora ou cá dentro.

Bardamerda 2016. O senhor Cohen levou a vida bem vivida, ponhamos os olhos nele, não só os ouvidos. Tomara nós. E Dylan, outro tio maluco, é fulano para se dispor a lá ir receber o Nobel só para, numa tirada veloz e despenteada, lho dedicar.

Ficamos assim. Com os vinis a rodarem nos gira-discos, até as cassetes nos leitores, mesmo o streaming a que falta – tanta falta – o som batido de uma mecânica qualquer. Ficamos com o que temos. Continuamos a crescer, um pouco mais sozinhos, mas continuamos. Abraçamo-nos e continuamos.

Aguenta-te, Bruce. Aguenta-te, Tom.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).