Não há quem não os tenha usado.

O senhor da mercearia usou o Caderno Azul e nele apontou os fiados todos. Alguns ainda continuam por saldar. Sobre a secretária, a do médico, a do professor, sempre repousou — e ainda repousa — a Agenda Condor, capa encarnada, letras encavalitadas a dourado. E por falar em professor e em escola: o caderno Scotch p’rá menina, o Capa Preta p’ró menino. Ou vice-versa. É que nisto dos cadernos, gostos não se discutem.

Adiante. Chegados aos dias de faculdade, não há muito o que discutir: sai um Universitário para os dois.

É pelos cadernos que se tira “a pinta” aos gazeteiros e aos marrões. Os últimos têm-nos escritos até à última linha da última página, letra redondinha e sem esborratar. O gazeteiro escreve “Sumário”, aponta-o — “Continuação da aula anterior…” , e rasura o resto da página com gatafunhos e jogo do galo. Pelo meio, hão-de estar folhas só pela metade: a que falta, e depois de humedecida e de ganhar o formato de “bolinha”, acabou na cabeça do colega que se senta na carteira da frente. Faz parte.

A Firmo existe há 65 anos. E é dela cada um destes cadernos que usamos e continuamos a usar.

Na fábrica de Vila Nova de Gaia, a produção não abranda, dias inteiros, todos os dias. A visita faz-se pela tardinha, pouco antes de trocar o turno das cinco e começar a pica do ponto, religiosamente e em fila. Produzem-se cadernos às centenas. Ou melhor: aos milhares. Ao fim de algum tempo, o ruído não nos soa mais a ruído: é uma sinfonia mecânica. Sincronizada. A máquina que corta o papel faz o ploc, a que o agrafa faz plic. Ao fundo, a dos envelopes — e que veloz é a “dispará-los” — trata do rufo: tsss, tsss, tsss, tsss, tsss.

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Rui Carvalho é neto de um dos fundadores da Firmo. É ele que hoje administra a empresa. Fá-lo desde 2011, quando voltou a ser propriedade da família Santos Carvalho. Antes, e durante alguns anos, chegou a ser da francesa Antalis. Mas a Firmo é portuguesa dos sete costados. Ou melhor: “tripeira”. Tudo começou em Portugal e no Porto.

O meu avô Manuel era professor primário. E também era sócio de uma papelaria. Certo dia, com os dois irmãos, o Artur e o Firmino, resolveram criar uma empresa que, ao mesmo tempo, tivesse o lado industrial e o de distribuidora. Na altura do Estado Novo os professores primários não podiam dar o nome às sociedades. Então a empresa ficou: Firmino dos Santos Carvalho. Isto ainda no tempo da Rua do Almada. Depois, com a ida para a Rua Camões, na Baixa, acabaria por se alterar o nome para Firmo”, recorda Rui Carvalho.

A fábrica de Vila Nova de Gaia foi inaugurada na década de 1980. E emprega metade (cerca de 90 pessoas) de todos os trabalhadores da empresa.

Uma pergunta se impõe: hoje, na Era da Internet, não estará o negócio do papel e de quem trabalha com ele em risco? Rui responde que “não”. E explica-nos que a Firmo usa da tecnologia para crescer. “Sabe, é como diz o ditado: ‘Quem não aparece, esquece.’ E nós apostámos muito no digital. Não é uma ameaça; é um aliado. Por exemplo: através da redes sociais, e mesmo não vendendo a Firmo diretamente ao cliente particular, conseguimos conhecer esse cliente e perceber onde podemos melhorar o nosso produto. Esse feedback é muito importante.”

“Wholesale B2B”. Podia ser um robô especial que a NASA fez aterrar em Marte, mas é apenas uma ferramenta digital que a Firmo criou. “Hoje em dia, através do site e do Wholesale B2B, os clientes particulares — papelarias, empresas, seja quem for — podem fazer as encomendas e tratar das entregas online, não precisando de se deslocar ao nosso Cash & Carry, por exemplo. A aceitação tem sido fantástica”, diz Rui Carvalho.

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Rui Carvalho é CEO da Firmo desde 2011. Foi nesse ano que a família Santos Carvalho (Rui é neto de um dos fundadores) voltou a ser proprietária da empresa (Foto: Hugo Amaral/Observador)

Em 1991 foi inaugurado, no Porto, o primeiro Cash & Carry de papelarias do país: o da Firmo. A empresa haveria de inaugurar outro em Lisboa, anos depois. Sim, os clientes não precisam de se deslocar mais ao Cash & Carry. Mas continuam a ir. “O marketing é muito importante. Mas a Internet não substituiu o diz-que-disse. Eu sou do tempo do diz-que-disse. O da conversa com o cliente. O da amizade que se faz com o cliente.” Quem o diz é José Braga, Diretor de Vendas da Firmo.

O “senhor Braga”, como é tratado por todos, está há quase meio século na empresa. É o funcionário mais antigo. “Cheguei aqui com 15 anos.” É um contador de histórias nato. Histórias que traz apontadas num caderninho – da Firmo, pois claro.

— Oh, você sabe lá: estava tão nervoso com o que me iria perguntar, que acordei às quatro da manhã e apontei aqui umas coisinhas para não me esquecer de nada.

Quando embala, vai-se-lhe o caderninho e vem a ele a “paixão” (usa da palavra vezes sem conta) que tem à empresa e ao que nela faz. “Vê este caderno?” Pega num. Folheia-o. “Isto é bom! Eu não posso vender aos meus clientes aquele papel ruim, em que se pousa a mão em cima da folha e esborrata a tinta. Se vendo uma coisa que não presta, não voltam mais. Acabou. O segredo do sucesso é esse: seriedade. E qualidade.”

O nicho do “mercado da saudade” & outras histórias do senhor Braga

Mas afinal, e mesmo com a crise, que vai e vem e leva sempre com ela o poder de compra, os clientes ainda vão à procura do melhor, do mais caro? “Nós temos de tudo. É fundamental ter de tudo. Há cadernos com uma gramagem melhor, outros com uma gramagem inferior. Mais baratos, mais caros. Há os clássicos — com um ligeiro restyling — e há as tendências. O que eu sinto é que os pais vêm a reboque dos filhos, ou os filhos a reboque dos pais, e estes preferem sempre gastar mais algum dinheiro no início do ano e saber que aquele caderno vai durar”, explica Rui Carvalho. E faz uma analogia: “Se compararmos os preços de um caderno da Firmo com o de um livro escolar, o custo não é assim tão elevado.”

Mas não se pense que o mercado da Firmo é só o escolar ou o das empresas. Há um mercado novo: o da memória. O que na Firmo é vintage — o Caderno Azul, por exemplo –, hoje é vendido a turistas (e não só) em lojas como A Vida Portuguesa, que se ocupam desse revivalismo. “Não tenhamos ilusões. O revivalismo ainda é um nicho. Mas se esse nicho for a nível mundial – e a Firmo está presente em 16 países –, pode ter uma escala interessante e ser realmente um mercado. O que não podemos é deixar de vender um produto nas grandes superfícies e tê-lo só nessas lojas revivalistas. Ele tem que estar presente nos dois sítios. O produto só é viável se continuar a ter procura”, lembra o CEO da Firmo.

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Ainda não tinha 15 anos quando foi trabalhar para a empresa. Chegou a diretor de vendas. “Comecei na Firmo e foi acabar na Firmo”, garante José Braga (Foto: Hugo Amaral/Observador)

Voltamos a José Braga. E à memória dos primeiros dias na empresa. “Brincar? Não. Sempre fui muito adulto, mesmo com os tais 15 anos. Não queria nada ir brincar com os outros miúdos para a rua. Queria trabalhar. E na Firmo ainda me tornei mais adulto. Foi a minha escola, profissional e pessoal.” E recorda: “Eu comecei a trabalhar na papelaria. E a papelaria também tinha uma gráfica, que fazia encomendas para muitos sítios. E era eu que ia a esses tais sítios entregá-las. E depois conhecia os manda-chuva todos. [Risos] Fui muitas vezes aos bancos. Fui à Sé do Porto — e quem me recebia e conversava comigo era o próprio D. António Ferreira Gomes. Cheguei a ir ao quartel ali no alto da Serra da Freita. Mas aí o Tenente-Coronel deixava-me horas à seca, enquanto esperava por ele!”

— Sabe o que é que me dá mais gozo? Vou-lhe contar uma história. Quando a minha filha entrou para a escola dizia-me: “Ó pai, os meus colegas não conhecem a empresa onde trabalhas.” Quando ela concluiu os estudos, todos gastavam cadernos da Firmo. É isso que me dá mais gozo: vencer. Vestir a camisola todos os dias. Comecei a trabalhar com a família Santos Carvalho e é com ela que vou terminar.

José Braga fala, emocionado, olhos nos olhos com Rui Carvalho. Depois disfarça — “Pois é…” –, desvia-os para a mesa, volta a remexer nos apontamentos que traz no caderninho. Mas gastou-os todos. E o administrador, que José Braga viu nascer e crescer, atira de pronto: “Só foi possível chegar onde chegámos com trabalhadores como o senhor Braga. O desafio daqui em diante é sermos uma empresa capaz de antecipar as tendências. Outro é aproveitar o digital a nosso favor. Mas queremos continuar a crescer e a internacionalizar a marca. E estamos a fazê-lo.”

Nome: Firmo
Data: 1951
Pontos de venda: Papelarias, grandes superfícies, lojas A Vida Portuguesa.
Preços: Vários.

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