Não há objecto mais apropriado do que um livro sobre bibliotecas. Funcionam como manual de instruções e matéria deles próprios, com proveito e economia. Proveito por ser o único público que garante a utilidade aos livros de instruções. Os engenhocas preferem experimentar por sua conta as maquinarias a seguir as instruções dos fabricantes, enquanto os bibliófilos, para experimentarem o livro, lêem-no. Daí que sejam também uma economia: quem quer formar uma biblioteca, agarre um gigo de livros sobre o assunto, que já está a formá-la e a aprender ao mesmo tempo com a teoria e a prática.

Nisso pensou Albino Forjaz de Sampaio quando lançou o seu Como Devo Formar a Minha Biblioteca e começou a ensinança com os melhores livros sobre livros. Parte do imprescindível Inocêncio, segue pela Biblioteca lusitana e vai por aí fora, numa biblioteca escolhida a dedo, entre raridades e livros bem cotados nos alfarrabistas, que faria vista na estante e peso quer na cabeça quer nos bolsos do livreiro.

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“Como devo formar a minha biblioteca”, de Albino Forjaz de Sampaio

Albino Forjaz de Sampaio, nos livros sobre livros, não aconselhou o seu, coisa que, mais do que imodéstia, seria um rotundo pleonasmo; se o fizesse, porém, sempre engrossaria uma secção que devia envergonhar os bibliófilos. Se excluirmos as obras mais ambiciosas, como o já referido dicionário de Inocêncio ou o catálogo de D. Manuel, que sabatinam os livros conhecidos, há pouca matéria de apaixonados de livros sobre livros. Quem quer ver descrito o prazer de chegar a um salão monumental, forrado de estantes, e desorientar-se com a imensidão de possibilidades de leitura, quem quer partilhar sem perturbá-lo o silêncio erudito de uma biblioteca, festejar o encontro de um livro desconhecido que versa sobre os nossos temas de interesse, poderá fazê-lo com uma exígua companhia de sete ou oito fólios.

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Lê o bibliófilo aprendiz, de Ruben Borba de Moraes, caso lhe interessem incunábulos e fólios preciosos, aprende a alambicar lombadas e a reconhecer livros raros, ganha o toque de perito, selecto, mas não se afunda em resmas de papel, em in-octavos desconjuntados e romances de cordel carcomidos; lê sobre livros, mas com a placidez do enólogo, não com a alegria do bêbedo; pode ler os estudos de Artur Anselmo, os aranzéis de Fernando Guedes sobre edições de antanho, o arqueológico livro do bibliófilo de Lemerre ou o novíssimo livro de Rita Canas Mendes sobre edição; nenhum destes livros, passem os seus méritos, dá conta da loucura que afadigaria qualquer psiquiatra que passasse uma tarde num alfarrabista: gente que, para poder entrar em casa, tem de primeiro fazer sair uma dúzia de livros, gente que tem sempre o mesmo número de livros e, para melhorar a biblioteca e continuar a comprar, vai sempre vendendo o mais barato, arquitectos que já constroem as suas estantes a partir dos livros repetidos, coleccionadores de livros sobre cidades que não tencionam visitar, anémicos que preferem deixar de comer a deixar de comprar livros, convencidos de que o banquete de Platão é prândio suficiente para a barriga, e toda uma trupe que lê o Alienista de Machado de Assis a saber ser essa a razão de o merecer.

Homem de colecção e não de cultura

Jacques Bonnet, em Bibliotecas Cheias de Fantasmas, recolhe uma série de histórias deste jaez; do glorioso martírio de um bibliófilo às mãos da sua biblioteca que, não aguentando a distância, saltou das prateleiras para abraçar o seu dono e soterrá-lo de caminho; de outro que, sem espaço para conservar a biblioteca em casa mas ancho dos seus livros, montou uma livraria com preços proibitivos, para poder exibir sem vender os seus preciosos fólios; destes, até à clássica história do bibliófilo que não aguentou ver os seus livros em leilão e licitou-os todos, um por um.

Bibliotecas cheias de fantasmas

“Bibliotecas cheias de fantasmas”, de Jacques Bonnet

Bonnet conta alguns episódios, como contava Pina Martins em conversa, e como em mexerico contavam de Inocêncio; um anedotário bibliófilo podia colher em si uma enorme biblioteca, das suspeitas de que Camilo, nas alturas de maior aperto em que precisava de vender os seus livros, passava a noite em claro a anotá-los para os valorizar “com anotações de Camilo Castelo Branco”, a um excêntrico aristocrático britânico que amealhou tantos livros que a biblioteca demorou um século a vender-se de leilão em leilão.

Da fauna de coleccionadores e bibliófilos pode dizer-se, com propriedade, que de facto dava um livro (apesar de eles não darem – nem sequer emprestarem – nenhum); e tanto dava que, de facto, deu. Há, no entanto, sempre uns certos ares enfunados nos livros sobre bibliofilia. Contam-se bizarrias, sim, mas como excentricidades de sábio, de Homem superior; poucas vezes se tomam as tinetas bibliófilas como o simples produto da mente esquipática de um coleccionador vulgar.

Ora, o traço fundamental do bibliófilo está na sua faceta de coleccionador, não de homem da cultura. O leitor de Camões tira mais proveito da leitura de uma edição moderna do Círculo de Leitores do que da estranha edição dos Piscos; o estudioso de Camões tem necessariamente de conhecer a primeira edição, mas não precisa de tê-la; a bibliofilia nem tem que ver com leitura – para isso bastam edições vulgares – nem com amor à arte tipográfica: há certamente melhores artistas nas oficinas modernas da Penguin do que entre os rudes operários que sujaram à pressa os primeiros folhetos dos Pickwick Papers; quanto aos objectos históricos, basta saber que os há, não é preciso possuí-los.

O prazer estésico de folhear a primeira Orpheu nem vem da qualidade duvidosa do papel, nem do ainda mais duvidoso erotismo da mulher nua da capa, vem do gosto da selecção e propriedade, da escassez e da distinção. Ora, como Chesterton bem explica num ensaio sobre o coleccionismo, não há nada que tenha valor de colecção senão aquilo a que os Homens arbitraria e generosamente concedem. Um homem que se dedique a coleccionar carvão depressa encontrará formas mais vulgares e bocados mais raros, como o primeiro coleccionador de selos encontrou muitas vezes certo número de dentes e poucas outro número; o prazer de juntar livros, de formar uma biblioteca, mais do que com uma alto parnaso de intelectos escolhidos, tem que ver com um misterioso milagre do Homem: a capacidade de se fascinar com assuntos de interesse vital nulo.

Trata-se daquilo a que – passe a carga violenta da expressão, usada para outros fins – os medievais chamavam Concupiscentia Intellectualis. O mistério da biblioteca é o mistério da curiosidade: de um Homem ser capaz de se interessar por futebol quando este está mais perto de lhe parar o coração do que prolongar a existência; de outro se interessar por numismática quando seria muito mais assisado gastar as moedas em bens essenciais do que coleccioná-las; o mistério da biblioteca, o mistério da curiosidade, é como o simples mistério do sal: do Homem ter o requinte de procurar que a comida saiba bem, quando ela na verdade não precisa sequer de sabor.

O sonho babélico de saber tudo

O mistério da biblioteca vai, por isso, muito para lá das historietas dos seus asseclas; daí que esteja bem entregue nas mãos de um Homem que, antes de biografar a sua biblioteca (e sua distinta genealogia, claro), historiou a curiosidade. A biblioteca, como Manguel bem explica, é o ramo da curiosidade descomedida, o sonho babélico de saber tudo, o que importa e o que não importa, o que é preciso e o que não é preciso saber. Este é o verdadeiro sentido da biblioteca: a ânsia de tudo; daí que Manguel explique que toda a junção de livros, da modesta colecção de um recém-letrado de seis anos, ao recente projecto babélico que é a internet, se trata de uma Babel potencial. Não apenas pelas propriedades magnéticas que qualquer leitor bem conhece: um livro atrai outro, outro completa o tema do primeiro, este novo já toca noutro tema que exige novo livro, até que cada livro impresso chame a si novas e infinitas lombadas; não apenas por isto, mas porque Babel, como a biblioteca, como a história de Adão, imprimem o carácter do orgulho e da curiosidade humanos: o gosto por aquilo de que não precisam.

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“A Biblioteca à Noite”, de Alberto Manguel

A Biblioteca à Noite, de Manguel, tem curiosidades como todos os livros de bibliofilia. Conta, por exemplo, a história de um Americano que cedeu ao irmão a sua metade de uma empresa milionária em troca do direito a comprar todos os livros que quisesse à custa da empresa; conta, ou melhor, desabafa, as agruras que arrasam qualquer bibliófilo na altura de arrumar uma biblioteca sempre maior que o espaço que lhe está destinado: conheço, por exemplo, quem nunca tenha conseguido usar a secretária de casa por ela estar atafulhada de livros que não cabem nas estantes (secretária e estantes essas que por acaso estão em minha casa, para grande desgosto da minha mulher), quem tenha substituído nos armários da cozinha os pratos por livros (pratos esses que não poderiam ser, em alternativa, postos na mesa da casa-de-jantar de novos conhecidos que a encheram de livros); Manguel tenteia também entre as classificações dos livros (Bonnet também o faz), o modo de os arrumar, se por ordem cronológica, se por ordem alfabética, se por ordem de compra (conheço quem os tenha por livrarias em que os comprou) ou por ligações sentimentais; relata a origem dos vários sistemas de cotas e discute a planificação de salas de leitura, problema de maior para quem frequenta bibliotecas municipais pejadas de estudantes sem uns tampões ou um rolhão que insonorize as cavaqueiras universitárias. Manguel alerta ainda para os perigos da utopia do armazenamento digital e menciona ainda (sem – graças a Deus! – o habitual tom febricitante mas também sem desculpas) o papel das censuras literárias e do uso de papel como acha de fogueira na moldagem da nossa imagem comum das bibliotecas.

Maguel lança historietas bibliófilas com larga cópia, visita inúmeras bibliotecas mas não são as anedotas de Borges ou das bibliotecas ambulantes da América do Sul que mais interessam; o maior encanto do livro está na forma como Manguel consegue transmitir o amor pelos livros sem a sobranceria habitual dos livros de bibliófilos; os seus problemas são problemas vividos, a biblioteca sonhada e o livro, se não é escrito sobre a pele, há-de pelo menos usá-la para a encadernação.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.