Título: “Nem todas as baleias voam”
Autor: Afonso Cruz
Editora: Companhia das letras
Páginas: 279

nem todas as baleias voam

Os movimentos e as tendências artísticas só costumam surgir como tais depois da sua morte. À vista aproximada, os modismos e as particularidades enastram-se constantemente, as amizades e inimizades confundem-se com as escolas e as diferenças notam-se melhor. Não há crítico que não considere o seu um tempo confuso, que não o julgue já livre de escolas dominantes, nem geração que não recuse as suas próprias afinidades. A geração de Orpheu anunciava que de modernismo só conhecia o teológico, de Loisy, Maeztú e Unamuno não se perfilhavam na geração de 98, para eles – os seus maiores representantes – inexistente.

Ora, quando os anos começam a passar e se vão decantando as verdadeiras originalidades literárias dos lugares-comuns do tempo, quando o que é eterno começa a prevalecer sobre o que era novo mas fugaz, começa-se também a perceber como é o ar do tempo que vai virando as páginas e secando as tintas dos autores.

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Serve este intróito para bosquejar uma análise, ainda tímida, claro, daquela que é ainda tida por nova literatura portuguesa. Nem falamos dos casos insulados, nem de grandes estreias, nem de súbitos descobrimentos de um maldito hibernado debaixo da montanha editorial que atulha as livrarias; agora que já os filhos dos jovens tentam as suas primícias literárias nos bancos da escola, que já não se batem pela atenção das editoras mas assistem as disputas pelos seus livros, é possível perceber como sopra o ar do tempo nos escritores que dominaram a ribalta nos últimos anos?

Sabendo dos vários caminhos que vão dar à mesma Ápia, do caminho aberto para uns por aquele Pedro Paixão mais intimista, aparentemente descuidado e sentimental (no sentido lato do termo), da via mais sul-americana de outros, arrancada às fantasias panteístas de um povo pobre, ou dos mais cerebrais caminhos fenomenológicos, pós-racionalistas, de mais uns, é possível perceber o que há de comum entre um Valter Hugo Mãe, um Afonso Cruz e um Gonçalo M. Tavares?

Por muito íngremes que sejam os abismos que os separam, por muito que tenham mundos diferentes, por muito que tenham graus de qualidade tão diferentes que nenhum termómetro meça a diferença, é possível encontrar o mesmo pó debaixo dos seus passos? É possível encontrar alguma peculiaridade da literatura deste tempo ou desta geração?

Ora nós, ainda de vista obnubilada por esta poeira que nos precede, entrevemos dois traços fundamentais de comunhão, em que estes autores rejeitam o mesmo género de problemas e contornam-nos, já de maneiras mais diferentes mas não de todo dissonantes.

Na literatura portuguesa ainda pesa, com grande força, o romance do século XIX. Daí que, tirando os cronistas da vida rural, já mais pacificados com Camilo depois de Aquilino Ribeiro ou de Miguel Torga, fujam como diabo da cruz do carimbo queirosiano. A herança da confissão de Lúcio ou do surrealismo não pesam da mesma forma que o romance de Eça de Queirós; um romancista atreve-se a fazer um pouco de crónica de costumes, a provar um pouco de ironia e sente logo o monóculo queirosiano a filtrar a sua prosa; daí que não haja propriamente, ou haja pouco, realismo na literatura contemporânea; há aquilo a que se chama um novo tipo de realismo, que consiste em ter apenas personagens pobres ou vidas sofredoras, como se o riso e a alegria fossem, de alguma maneira, abstracções inventadas por um funâmbulo metafísico. Mesmo nos casos que se privam de grandes fantasias, não há o esforço explicativo, a enumeração de causas e explicações físico-filosóficas do romance oitocentista, tal como há pouco humor ou pouca vontade de representar as classes elegantes sem ser por um ponto de vista abaixo e desconfiado. A parcimónia de Evelyn Waugh, o realismo mágico de García Marquez, ainda deslumbram; o realismo, por outro lado, pesa.

Acontece, no entanto, que a concisão de Waugh tinha uma carga de subentendidos morais, que o realismo mágico sul-americano se tratava de facto de um realismo no sentido em que imitava a maneira de contar do seu povo, que a nova literatura portuguesa também rejeita. A literatura contemporânea tem horror a qualquer tipo de militância, seja política, seja moral, seja mesmo humana; não há corrente mais desconsiderada do que o neorrealismo, nem despertam mais depressa os alarmes de incêndio do que quando se sentem os primeiros fumos de romance de tese; esta, no entanto, é só a face mais visível de um modelo com muito mais ramificações. Poucas vezes há, nas personagens dos nossos autores, um acto de bravura descomedida ou de generosidade; poucas vezes o enredo se move com mais do que umas causas etéreas e idiossincráticas, no máximo mesquinhas, porque as causas nobres soam a moralismo e as carnais a romance fisiológico, à Zola.

Que sobra, portanto, de um romance que quer fugir à caracterização social, ao moralismo que, com mais ou menos conflitos, dominou o romance psicológico, subjectivo, que quer fugir a tudo o que, do Amadis aos nossos dias, deu interesse ao romance? Nos casos mais interessantes, como nos livros mais inspirados de Gonçalo M. Tavares, o romance gravita em torno de uma espécie de exagero da lógica que lhe dá um poder criador e muitas vezes contraditório; as personagens de Matteo Perdeu o Emprego são o caso mais acabado disto mesmo. A narrativa tem um certo tom absurdo que advém do próprio exacerbar da lógica. Nos casos mais inóspitos a narrativa cai numa espécie de sentimentalismo sem finalidade, deslumbrado consigo próprio e com as estruturas da narrativa. As metáforas, arbitrárias, criam sentido – como uma personagem que, por o autor dizer dela que é tão delicada como uma rosa, vai-se paulatinamente transformando em rosa. Nos melhores casos, o romance é interessante, mas dificilmente mais do que isso: ninguém se apaixona pelos paradoxos da linguagem como se apaixona pela força ardilosa de Ulisses. Nos piores casos, ficamo-nos com uma sucessão de episódios a pretexto de metáforas, que prendem uma narrativa sem fim e com um muito parco sentido.

Quer num caso quer noutro, porém, o resultado é muitas vezes semelhante em muitos aspectos. Vemos por exemplo, que as personalidades em cena dependem muito mais de jogos de linguagem, de robótica poética, do que de verdadeiros traços de carácter. O leitor compare o tipo de metáforas e verá que, mais ou menos sentimentais, com mais ou menos gosto pelo grotesco, mais herméticas ou mais lógicas, mais surreais ou simplesmente inesperadas, mais ou menos conseguidas, encontrará o mesmo gosto em discorrer sobre a própria linguagem que os autores criam – e não sobre aquela que a realidade dá – em grande parte dos autores contemporâneos. Aos já referidos, podemos acrescentar José Luís Peixoto e Possidónio Cachapa – embora num registo mais moderado – Nuno Camarneiro ou António Tavares.

Ora, o novo romance de Afonso Cruz, Nem todas as baleias voam, parece-nos o exemplo acabado dos perigos desta tendência literária. Claro que Afonso Cruz tem também o seu próprio Universo, que neste caso gravita em torno da música americana, jazz e blues, com uns pontilhados de gnosticismo tão caros ao autor. Ora, aquilo que salta logo à vista é o desacordo entre um dos universos e o modelo narrativo; a crueza dos blues, aquela forma triste de enfrentar a realidade, contrasta com o tom meio feérico da narrativa. O interesse de On the road, de Kerouac, está precisamente na adequação do modo de narrar, caótico, à mundividência do Jazz da beat-generation. Os blues, que são um estilo quase material, de sofrimento no corpo, não casam bem, parece-nos, com o tom poético escolhido.

A história, por outro lado, parece contida nos seus fins. Afonso Cruz, vê-se, tem gosto pela ficção pura, pelo lendário aventuroso que Borges legitimou no século XX e o romantismo no século XIX; acontece, porém, que à falta de tese (fosse ela qual fosse) parece que esta baleia navega apenas com o fito de que as várias histórias independentes se cruzem. O corpo principal – que tem um método narrativo mais interessante, pelos relatórios de um alto quadro administrativo dos Estados Unidos – é o de Erik Gould, um pianista.

Em meados do século passado, a CIA teria montado uma discreta frente de combate ao comunismo que passaria por encabar mensagens subliminares na música de compositores enviados para as zonas conflituosas. Este Gould, abandonado pela mulher, tem um filho que vê, fisicamente, sentimentos antropomorfizados, e que trava amizade com uma prostituta em declínio. Nas longas ausências do pai ao serviço do plano da CIA, Tristan fica em casa da família Dresner, casa de um editor-livreiro com um único êxito comercial – um escritor anónimo – que procura reconstruir um Evangelho gnóstico na posse de prostitutas. Com o passar do livro, percebemos que o escritor anónimo é afinal o quadro da CIA, que se diverte a raptar pessoas e a exigir delas que ficcionem o que manda anonimamente para o editor Isaac Dresner; que a mulher de Erik Gould foi raptada por este mesmo ficcionista sádico e que a prostituta amiga da criança é a depositária da última parcela do Evangelho gnóstico.

Há umas descargas sentimentais, uma série de subentendidos psicológicos que leitores do nosso calibre não conseguem sempre atingir e uma certa arbitrariedade no desenrolar da acção que nos parece sintomática do estilo já referido.

Afonso Cruz gosta ainda de ficcionar hipóteses académicas – como a possibilidade de criar uma correspondência entre a significação alfabética e a significação tónica, musical –, de entrar pelos pauis gnósticos e cabalísticos e de deixar por dizer umas referências estilosas, como as de Kurt Vonnegut ou Chet Baker. Fora dos requebros metafóricos, a linguagem é simples, procura muitas vezes semelhanças sonoras, umas com graça, outras mais forçadas, como em “Vogel vogava em casa dos Dresner”, em que não se percebe o porquê do verbo vogar senão pela semelhança com Vogel. Afonso Cruz tem, isso nota-se, uma mente viva e imaginativa, capaz de criar uma história em duas linhas e de manejar – coisa difícil – um enredo com várias cordas sem se emaranhar nos seus próprios movimentos. Não lhe contestamos o talento; contestamos, isso sim, os méritos que lhe trazem a sua filosofia. E a filosofia muda, mas a imaginação não se cria.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.