Fawlty Towers é o nome de uma série inglesa cómica da BBC nos anos 70, votada pelo Instituto de Cinema Britânico em 2000 como a melhor de sempre. O inimitável John Cleese dos Monty Python escreve o guião e também aparece como ator principal. É ele o proprietário do hotel Fawlty Towers, no litoral inglês. O seu papel é o de Basil Fawlty, um homem snob, mesquinho, xenófobo e paranóico, sempre à procura de parecer de classe alta. A sua mulher é Sybil Fawlty, a verdadeira gerente do hotel, com pulso firme e cabeça pensadora. Polly Sherman (mulher de Cleese na vida real) é a rececionista, sempre envolvida noutras funções do hotel. O quarto elemento mais participativo é Manuel, um empregado espanhol, de Barcelona, com bom coração, só que desajeitado, seja qual for a tarefa, da mais simples à mais ortodoxa, e até na arte de falar inglês – quando não entende o que lhe pedem, nem que esteja desenhado, exclama o famoso “Qué”?

Se Basil o humilha constantemente, Sybil é condescendente com Manuel quando este executa mal ou não entende o inglês, e desculpa-se aos clientes com um “Oh, ele é de Barcelona.” Ora bem, Fawlty Towers é uma série de dimensão mundial. Ultrapassa fronteiras. Passa em Portugal. E também em Espanha, o país onde a cerimónia dos óscares não faz qualquer sentido porque é tudo dobrado – não há como aferir sobre o tom de voz de Marlon Brando, o jeito de falar de Al Pacino, a interpretação de De Niro e por aí fora. Os espanhóis têm a mania de traduzir tudo, está bom de ver (menos o Verão Azul).

Quando lhes chega Fawlty Towers às mãos, a primeira coisa a fazer é mudar o personagem de Manuel. Não o nome, isso não. Continua Manuel, mas não é de Barcelona, isso não. É mexicano, isso sim. E continua a ser humilhado, claro. Falamos insistentemente dele, porque o Manuel já não está entre nós: o ator Andrew Sachs deixa-nos aos 86 anos. E aproveitamos este momento de pesar porque o Barcelona (clube) é como o Manuel e está numa crise de identidade. Qué? É isso mesmo, o Barcelona está mal na Liga espanhola, a seis pontos do líder invicto Real Madrid, e só lhe resta ganhar o clássico deste sábado sob pena de perder o comboio do título antes do Natal.

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Vamos às raízes.

O Barcelona funda-se em 1899 por ideia de um suíço (Joan Gamper) que nomeia um inglês (Walter Wild) como presidente. Da capital, vem a reação, com a criação do Real Madrid, em 1902, sustentado por catalães, dos quais um (Juan Padrós) é o primeiro presidente do clube. Os dois rivais de Espanha nascem tortos, infiéis às suas origens. Ao longo do tempo, avançam para uma rivalidade histórica e já centenária. O Barça acusa o Madrid de ser o clube do regime, numa alusão aos tempos do general Franco.

Os madridistas respondem na mesma moeda: o tal general constrói cinco campos de treino ao Barcelona sem dar uma peseta que seja ao Real. Este pingue-pongue é eterno e ganha contornos impensáveis em 2010. É o ano em que o clássico evolui e passa de um jogo intenso a nível nacional para um à escala planetária. Por isso mesmo, este sábado, joga-se às 16h15 em Espanha Continental (15h15 em Lisboa, 23h15 em Shangai). A globalização abraça o futebol, está mais que visto. O primeiro passo é dado pelo Barcelona, com a contratação de Pep Guardiola em 2008. Dois anos depois, aparece Mourinho. Os dois, cada um intelectual à sua maneira, elevam o jogo a um registo nunca visto e jamais repetido desde o 5-0 de Novembro 2010.

https://www.youtube.com/watch?v=Jg4Mu2fu_3g

O jornal francês “L’Équipe”, essa instituição da leitura e da boa escrita, lança o DVD dos 5-0. É o reconhecimento da superioridade indiscutível do Barcelona sobre o maior clube do mundo. A entrega é limitada ao stock de 275 mil exemplares, na compra de um “L’Équipe”. No fim do jogo, aparecem umas imagens captadas no túnel de acesso aos balneários em que se vê nitidamente um histérico Sergio Ramos a partir a loiça toda. No meio daquela azáfama toda, Xavi quer serenar os ânimos e entrega a bola de jogo para as mãos de Lass Diarra. O médio não entende o gesto e olha-o com espanto. Xavi, autor do 1-0, solta um provocador “como não tocaste nela durante a noite, podes senti-la um bocadinho.” Lá vem mais um sururu.

Daí para cá, o clássico afunila as competências à conta dos dois E.T.’s Messi e Ronaldo. Donos da Bola de Ouro desde 2008, um e outro dividem o mundo ao meio durante 90 minutos. No tempo dos 5-0, a diferença entre os dois é enorme e voam perguntas indecentes: porque é que Ronaldo é tão assobiado em Espanha e Messi não? Porque é que Ronaldo é tão maltratado pelos adversários e Messi nem tanto? Porque é que Ronaldo consegue sempre irritar os adeptos e Messi não? Porque é que os árbitros são mais condescendentes com Messi do que com Ronaldo? Porque é que Ronaldo é menos apoiado pelos companheiros de equipa do que Messi?

Passam-se uns anos e Ronaldo conquista as pessoas. Com trabalho. Títulos. Golos. Ninguém é indiferente à categoria de Ronaldo. Nem à de Messi. Só que o argentino é um aglutinador de adeptos incondicionais à conta do seu ar invariavelmente despassarado, como quem está a fazer um valente frete.

https://www.youtube.com/watch?v=kmnQwZhHYRE

As extraordinárias capacidades técnicas e goleadores de Messi e Ronaldo dá nisto. Um faz, o outro imita (e, às vezes, até supera). É um mundo muito próprio, o dos dois melhores jogadores do mundo, imersos num frenético pingue-pongue desde o Mundial-2006. Como assim?

Estamos em (habitue-se à expressão, será assim até ao fim do texto) Junho 2006, Messi é do Barcelona, Ronaldo ainda joga pelo Manchester United mas isto aqui é diferente, um degrau acima de qualquer competição de clubes. Trata-se do Mundial da Alemanha. No dia 16 Junho, há espetáculo em Gelsenkirchen com o Argentina 6 Sérvia 0. Messi entra aos 75’ e fixa o resultado aos 88’. O melhor em campo é um tal Saviola, autor de cerca de zero golos nessa tarde. No dia seguinte, em Frankfurt, a seleção nacional carimba a qualificação para os oitavos-de-final com 2-0 sobre o Irão. Ronaldo marca de penálti, aos 80’.

Estamos em Setembro 2009 e os dois já esgrimem argumentos na mesma liga, a espanhola. No dia 19, o Barcelona goleia o Atlético Madrid por 5-2, com um golo de Messi a abrir e outro a fechar. No dia seguinte (habitue-se à expressão, será assim até ao fim do texto), Ronaldo responde à letra com um bis ao Xerez.

Estamos em Maio 2010, é a 35.ª jornada da Liga espanhola. Dia do Trabalhador, os melhores não falham, óbvio. Dia 1, o Barça dá 4-1 em Villarreal com bis de Messi. No dia seguinte, resposta à letra (habitue-se à expressão, será assim até ao fim do texto) de Ronaldo no 3-2 ao Osasuna.

Estamos em Maio 2010. Não, não fizemos corta e cola do texto anterior, é mesmo assim. Agora é a 36.ª jornada. No dia 4, Messi faz dois ao Tenerife (4-1) e, desta vez, Ronaldo não responde tão-só à letra e toma lá três (4-1 ao Maiorca).

Estamos em Abril 2011, joga-se a Liga dos Campeões, 2.ª mão dos quartos-de-final. No dia 12, o Barça certifica o apuramento com 1-0 em Donetsk, adivinhe lá por quem? No dia seguinte, Ronaldo desbloqueia o nulo em White Hart Lane, casa do Tottenham.

Estamos em Setembro 2011 e o tema é campeonato espanhol. No sábado, dia 24, o Real Madrid avia o Rayo Vallecano por 6-2, hat-trick de Ronaldo. Duas horas mais tarde, acaba o 5-0 do Barça ao Atlético, hat-trick de Messi.

Estamos em Abril 2012, em modo Liga dos Campeões. Dia 3, Messi bisa com o Milan (3-1). No dia seguinte, resposta à letra de Ronaldo vs. Apoel Nicósia (5-2).

Estamos em Outubro 2012 e os dois grandes da liga estão sintonizados, com duplo 5-0. O Barça na casa do Rayo Vallecano (bis de Messi, no dia 27), o Madrid em Maiorca (bis de Ronaldo, no dia seguinte).

Estamos em Janeiro 2013. O dia amanhece com hat-trick de Ronaldo ao Getafe (4-0) e anoitece com o póquer de Messi ao Osasuna (5-1). Que delírio.

Estamos em Abril 2013, semana europeia. No dia 2, golo de Messi ao PSG em Paris (2-2). No dia seguinte, uma singela contribuição de Ronaldo no 3-0 ao Galatasaray no Santiago Bernabéu.

Estamos em Maio 2013, na 34.ª jornada da Liga espanhola. Ronaldo marca uma, duas vezes no 4-3 ao Valladolid. No dia seguinte (5), é Messi quem responde à letra no 4-2 ao Betis.

Estamos em Setembro 2013. Há três dias, hat-trick de Ronaldo em Istambul (6-1 ao Galatasaray). Há dois, hat-trick de Messi ao Ajax em Camp Nou (4-0). Fim? Nem por sombras. Há mais, mais, mais e mais. É o jogo do gato e do rato. E quem é o gato e o rato? Uyyyyy, depende.

Uma coisa é certa: Ronaldo domina em Camp Nou. Em matéria de golos, queremos dizer: 10-9. E, atenção, Messi até começa a marcar mais cedo, quando Ronaldo ainda é do United. Só que o capitão da nossa seleção arranca imparável na época 2011-12, a do Real campeão espanhol. O clique dá-se aí, em Abril 2012. Marca o golo do título, por assim dizer. Na corrida para o abraço, junto à bandeirola de canto, abranda o ritmo e mete a mão direita a meia altura enquanto diz repetidamente calma com as sobrancelhas arqueadas e cara de mau.

No clássico seguinte, em Agosto, para a Supertaça espanhola, Ronaldo abre o marcador e Messi faz o 2-1, de penálti. Mais adiante, em Outubro 2012, de novo para a Liga, o clássico acaba 2-2. Dois golos de Messi e dois de Ronaldo. Daí para cá, nunca mais Messi dá um ar de sua graça. Já Ronaldo marca em Março 2015 e decide o 2-1 em Abril 2016. Com estes dois golos, dá a volta ao marcador no duelo particular com Messi. Este sábado, às 15h15 (SportTV 1), mais um clássico. Messi vs. Ronaldo. Ou Barça vs. Real. Como queiram.