O portão de metal virado para a rua esconde a história de um homem que só aos 96 anos de idade, depois de acordar de uma operação, decidiu ser produtor de vinho. “Tenho de ir plantar uma vinha!”, terá exclamado o barão Bodo von Bruemmer ainda debilitado de uma cirurgia.

Os factos podem não ser estes ipsis verbis, mas esta é a história que de há dez anos para cá tem circulado de boca em boca e, mais importante, de copo de vinho em copo de vinho. O homem que desafiou a morte e resistiu a vários diagnósticos pouco felizes morreu no passado dia 26 de novembro, com 105 anos contados e uma vida de impulsos bem-sucedidos e paixões duradouras. Von Bruemmer assistiu a duas guerras mundiais, à queda do muro de Berlim e à revolução dos cravos.

O nome, difícil de pronunciar q.b., denuncia a ascendência germânica. Bruemmer nasceu em 1911 numa província russa de nome Curlândia que, após a Primeira Guerra Mundial, passou a fazer parte da Letónia. Como recordou ainda em vida à Notícias Magazine, aos sete anos de idade deixava a vida que herdara para trás rumo à Alemanha, ficando posteriormente com nacionalidade alemã e suíça. Independentemente do que dizia o BI, sempre se afirmou como um homem livre.

Disseram-lhe que ia morrer. Disseram-lhe mais do que uma vez. Tantas vezes que o barão acostumou-se a brincar com a ideia da morte — ela que esperasse, dizia divertido. Corria a década de 1960 quando foi diagnosticado com uma doença incurável. Deram-lhe poucos anos de vida e, a pensar na eventual viuvez da mulher, mudou-se para Portugal, país onde viria a sobreviver a mais quatro doenças graves. Saiu vencedor de todas as batalhas e chegou a dizer à Up Magazine que foi o país que o curou e fortaleceu.

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A quinta Casal Santa Maria, em Colares. (foto: Ana Cristina Marques / Observador)

Uma casa em Portugal, um lar em Colares

O cheiro de Portugal entranhou-se-lhe na pele, no coração. Mal o barão pôs os pés em terras de Camões, ainda no aeroporto, ficou encantado e determinado a ficar. Era a primeira vez que von Bruemmer estava no país, que decidira visitar depois de ver um anúncio no jornal de uma propriedade à venda em Galamares. Pouco interessava que localidade era essa, apenas o impulso que o fez pedir a um amigo, à data a viver no Estoril, para sondar o château.

O negócio ficou sempre por concluir — quis o destino que o barão vivesse o resto dos seus dias no Casal Santa Maria, essa propriedade tão perto do mar, que dizem possuir as vinhas mais ocidentais da Europa, na orla costeira da Serra de Sintra. Destino ou fado, como lhe queiramos chamar, certo dia, enquanto passeava pela zona de Colares, o barão bateu com a cabeça num sinal antigo de uma paragem de autocarro. Praguejou e de seguida admirou: em frente estava a quinta hoje conhecida pelos vinhos aí produzidos.

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Um dos vinhos mais conhecidos do Casal Santa Maria, com uma salinidade e frescura muito próprias. (foto retirada do site vinha.pt)

A propriedade remonta ao início do século XVIII e ficou cerca de 100 anos sem produzir vinho. O cenário mudou quando a força da terceira idade resgatou as vinhas do abandono a que tinham sido votadas: atualmente o Casal Santa Maria produz 100 mil garrafas por ano e 13 rótulos diferentes, muitos deles já premiados. Seja o pouco usual Pinot Noir ou o atlântico Chardonnay, os néctares com a assinatura dos enólogos Jorge Rosa Santos e António Figueiredo ganharam fama e respeito.

Mas os cavalos e as rosas vieram primeiro, o vinho depois. A quinta é um autêntico jardim onde as roseiras têm lugar de destaque — foram aí plantadas para homenagear a mulher do barão que morreu muito antes dele. A memória desse seu grande amor ficou gravada nas flores coloridas que servem de companhia à vegetação que prima pela diversidade. A vinhas, essas, foram plantadas de raiz — já que a produção vinícola da quinta sofreu um intervalo de 100 anos — e fizeram do barão o produtor mais velho de Portugal (quiçá do mundo).

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Uma vinha que é também um jardim (foto Ana Cristina Marques / Observador)

Memórias sem-fim de uma vida interminável

O Casal Santa Maria pode ser visitado e os seus vinhos provados mediante marcação. E é durante essa visita que se contam algumas das histórias mais caricatas. Sara Duarte, a guia, sabe-as a de cor em salteado e conta os momentos mais engraçados em diferentes línguas, para quem quiser ouvir. Momentos como aquele em o barão deixou o convidado de jantar — o pai de Juan Carlos, que viria a reinar em Espanha entre 1975 e 2014 — para se juntar aos Bombeiros de Colares. Na altura, os incêndios assolavam a zona, a mais pequena região produtora de vinhos tranquilos do país, e era preciso cuidar da terra, das vinhas, da propriedade.

“Era como se fosse o nosso avô”, diz António Figueiredo. “Tomava conta de todos nós, mas também dava um sermão quando era preciso.” Ao Observador, o enólogo recorda o homem de postura simpática, que gostava de debater história durante horas a fio, sentado à mesa de refeições, e que tomava decisões consoante o lado para que o pêndulo de estimação pendesse. “Queríamos sempre que ele ficasse mais um pouco, e já muito ele fez para estar connosco este ano”, continua Figueiredo, com a voz um pouco trémula.

De olhos continuamente postos no futuro, o barão sempre pensou a longo prazo sem pesar as limitações físicas que se sucediam umas atrás das outras. Nesse registo, criou uma fundação para que o Casal Santa Maria, os seu vinhos e as suas pessoas continuassem no tempo, muito depois dele. E assim será.