Título: “A Denúncia”
Autor: Bandi
Editora: Alfaguara
Páginas: 144

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A Coreia é um museu vivo da Guerra Fria. Só ela nos resta como relíquia do que foram esses sessenta anos em que o mundo viveu dividido em dois campos sob a hegemonia dos Estados Unidos e da União Soviética. Na primeira metade do século XX, durante “mais de duas gerações”, a Coreia estivera sob domínio japonês. Com a derrota do Japão, o território e as populações dos imemoriais Três Reinos cristalizaram depois da guerra nos dois “reinos” actuais: a Coreia do Sul, herança da ocupação americana, e a Coreia do Norte, reminiscência da ocupação soviética.

A fronteira entre as duas Coreias, muito à maneira da expansão colonial de fins do século XIX, foi traçada com uma régua. Foi traçada às pressas, num longo serão febril, por dois coronéis americanos e ratificada num mapa pequenino do National Geographic. Decidiram escolher como linha de demarcação o famoso Paralelo 38, traçando uma “grande linha sobre um papel dócil”, para parafrasearmos muito ligeiramente o que Ernest Lavisse escrevia em 1891 (o ano do nosso Ultimato). Atravessava “mais de 75 cursos de água e 12 rios, intersectava muitas cumeadas montanhosas em vários ângulos, cortava 181 caminhos de carroças, 104 estradas rurais, quinze estradas provinciais de piso para todas as estações, 8 autoestradas e seis linhas de caminho-de-ferro.” A Norte estavam duas dezenas de milhões de pessoas, num território com um pouco mais de um quinto que o do nosso país; a Sul, estava uma população que era (e se mantém) mais ou menos o dobro da população do Norte, numa área praticamente idêntica à do presente Portugal. Assim acabou por ficar até hoje a vetusta Coreia.

A Coreia do Norte é o Radio City Music Hall do comunismo, um país inteiro amestrado e coreografado como as “Rockettes” de Nova Iorque, férrea e ferozmente governado pela dinastia vermelha dos Kim. O soberano hoje felizmente reinante é Kim Jong-un, o “líder supremo”, filho de Kim Jong-il, o “querido líder”, nosso pai, que por sua vez sucedera ao seu pai, fundador da casa, o “grande líder” Kim Il-sung, ensinado na escola de Estaline. É da vida quotidiana da gente humilde que há dezenas de anos sobrevive (ou não) sob o império de uma espécie de “via coreana para o socialismo” que nos vem falar o autor de A Denúncia, um livro de contos recentemente publicado. Assina-os um pseudónimo ingénuo: Bandi, ou seja “pirilampo”, que se pretende uma luz no fundo do poço daquela interminável alvorada.

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São sete contos: “O ulmeiro-tesouro” (a tragédia pessoal de umas ilusões perdidas), “A cidade dos espectros” (uma criança a quem os grandes cartazes de Marx e do Grande Líder metem medo, para desgraça da família), “Tão perto, tão longe” (o drama de um filho que não consegue visitar a mãe moribunda na terra natal), “A fuga” (quando já não se aguenta mais o assédio de um funcionário prepotente), “Pandemónio” (o inferno é todos sermos obrigados a estar sempre a rir dentro da cerca que nos rodeia), “O Palco” (a vida como representação), “O cogumelo vermelho” (o título explica-se por si próprio). Precede-os um exórdio dedicado ao “barbudo europeu” que não é preciso dizer quem é. Na sua singeleza e sobriedade, na sua mansa revolta, na “suave melancolia” do seu desencanto, mais pungente do que qualquer possível melodramatismo, os contos são um testemunho comovente da escravização de milhões de pessoas de boa vontade (destaco entre os sete contos, pela sua maior densidade psicológica e pelo seu mais profundo dramatismo, “O ulmeiro-tesouro”).

A infelicidade, no entanto, apesar da atração mórbida que inspira e ao contrário do célebre ditado de Tolstoi, tende a ser repetitiva – o que acaba por nos embotar para a desgraça alheia. A Denúncia não nos vem revelar nada que não saibamos sobre o regime da família Kim e do seu comunismo doméstico. De resto, saiu recentemente nalguns jornais, com certa discrição, a notícia de que um estudante americano em excursão à Coreia do Norte fora preso e condenado a 15 anos de trabalhos forçados por ter surripiado no hotel um cartaz de propaganda oficial; habilmente interrogado nas masmorras da polícia “confessou” que o furto era parte de uma conjura para atentar “contra as motivações e a ética do povo coreano”. Os coreanos, pobres deles, normalmente nem sequer têm direito a notícias nos jornais. Este género de coisas é o seu já velho “normal”, com a Bowibu (a polícia secreta) e os denunciantes permanentemente à perna, as suas três classes de cidadãos, com diferentes direitos e estatutos, em que os antecedentes familiares também são tidos em conta (se não foste tu foi o teu pai), as autorizações obrigatórias para poder viajar de uma povoação para outra, a arregimentação cuidadosamente orquestrada para os “acontecimentos número um” e o racionamento de tudo. Nos anos em que “Bandi” escreveu estes contos (nos anos 90 do século XX) os êxitos da “economia planificada” fizeram morrer à fome centenas de milhares de norte-coreanos, numa “catástrofe humanitária” de tais proporções que o regime teve de aceitar uma importante ajuda internacional.

A Denúncia – título que segue a versão francesa e que os ingleses preferiram traduzir por “A acusação” – não provocou grande alarido na Península. Naquilo que conta, não se distingue especialmente dos testemunhos de muitos coreanos do norte refugiados na Coreia do Sul (estranhamente, conhecem-se poucos casos de gente que tenha fugido para os paraísos socialistas). No estrangeiro, não fez muita gente falar do despotismo norte-coreano. Criou alguma polémica – mas foi quanto à sua “autenticidade”, não a dos factos narrados (cuja veracidade ninguém ignora) mas a do autor. Supostamente, o pseudónimo que assina estes contos não encobriria como se anunciava um autor norte-coreano a viver no Norte, membro de uma muito oficial Associação de Escritores, cujo manuscrito teria sido passado de contrabando para o Sul, com risco para a própria vida do autor e dos seus cúmplices. (“Bandi” que tenha cuidado. Com todas as pistas que são dadas na apresentação do livro uma Bowibu digna desse nome não deve ter dificuldade em identificá-lo.) Uma das extraordinárias razões para esta “polémica” – segundo o jornal de esquerda francês “Libération” – foi o facto de que o editor sul-coreano deste livro seja “classificado como um ultraconservador que nunca escondeu as suas antipatias a respeito da Coreia do Norte” (Qual seria o sentimento adequado nesta matéria? Simpatia? Compreensão? Ternura?)

A esquerda tem razão numa coisa. TINA? Não há alternativa a certos arranjos periclitantes ou malfadados que regem este nosso mundo? Claro que há. Há mais do que uma, até. Tem cada qual o seu preço. Uma delas é a que está representada na República Popular Democrática da Coreia. Sem falar no resto, após mais de meio século à sombra da foice e do martelo o PIB per capita da RPDC consegue hoje ombrear com o da Guiné-Bissau ou do Haiti.