Os melhores

“Lavoura Arcaica”, Raduan Nassar (Companhia das Letras)

Infelizmente podemos dizer que foram os ingleses que nos fizeram descobrir um dos maiores escritores de língua portuguesa vivos — Raduan Nassar — quando colocaram como semi-finalista do prestigiado Man Booker o romance Um Copo de Cólera. Nassar, brasileiro de origem libanesa, de 83 anos, que deixou de escrever há mais de 30 e vive isolado no interior do Brasil, recebeu então o Prémio Camões e a sua obra completa (apenas três livros) está a ser editada da Companhia das Letras, embora já existisse há anos uma edição discreta da Relógio D’Água. Em setembro foi finalmente lançada a nova edição de Lavoura Arcaica, o primeiro livro do escritor e uma absoluta obra-prima da nossa língua. A história do regresso a casa do filho pródigo tornado filho maldito é uma espécie de romance-poema tal a densidade da sua linguagem, a profundidade da sua trama existencial. Uma travessia interior com ecos bíblicos, sopro de tempos imemoriais, acontecimentos fundacionais. Um livro avassalador na sua beleza escura e funda.

“Heroíades”, Ovídio (Cotovia)

Chamam-lhe o poeta do amor. Ledo engano. Exígua gaveta para fechar tão grande poeta. Ovídio é antes de tudo o poeta que celebra as ligações. Todo o tipo de ligações (e consequentes desligações) que nos atravessam o corpo e alma: o amor, a traição, o ciume, a perda, o ódio, a morte, o erotismo. O que faz de qualquer obra deste poeta, que viveu na Roma antiga (43 a.C-18 d.C), um objeto de absoluta modernidade é a forma como nesse canto das ligações ele rompe constantemente as fronteiras racionais instituídas: junta homens e deuses, escreve na voz feminina, justapõe pessoas reais a pessoas ficcionais, dá voz a figuras homossexuais como Safo. Estas Heroíades são compostas por vinte e um poemas epistolares escritos na voz de mulheres, como Penélope ou Dido, aos seus homens ausentes, não são poemas de amor mas expressão de corpos mudados noutros corpos. No ano em que a Cotovia viu desaparecer o seu editor, André Jorge, é um sinal de esperança e de vida vê-la continuar a dar-nos a possibilidade de ler autores fundamentas da cultura Ocidental.

“Dias Birmaneses”, George Orwell (Relógio d’Água)

Menos celebrado do que 1984 ou Animal Farm, pertence à mesma família de romances que descrevem sociedades totalitárias, mas desta vez vira a agulha para o colonialismo e mostra-nos o racismo, tanto na sua forma violenta e visceral como benévola e condescendente, o parasitismo da elite colonial, o parasitismo também de alguns nativos que desejam ascender na sociedade dos brancos, os modos de subjugação da grande massa popular. É fascinante saber que este livro se baseia na experiência do autor como polícia colonial na Birmânia, nos anos 20 do século passado, quando ainda era apenas o cidadão Eric Blair e não o inquietante escritor George Orwell.

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“Habitarei o meu Nome”, Saint-John Perse (Assírio & Alvim)

Apesar de 2016 ficar marcado por um decréscimo da publicação de poesia traduzida para português, esta antologia de Saint-John Perse, (pseudónimo do diplomata francês Alexis Léger) da Assírio & Alvim, com tradução assinada por João Moita, deixa-nos um pouco reconfortados. O poeta prémio Nobel da Literatura em 1960, tinha apenas dois livros traduzidos entre nós: Anabase, na Relógio D´Água e Pássaros, na extinta Hiena. Esta antologia vem dar-nos a possibilidade de conhecermos a amplitude da obra deste poeta, que foi também um político fundamental na Europa dos anos 30. Poesia hínica, versos longos de fulgor épico, lendário, feita das coisas que permanecem, da luta de homens estoicos como o próprio Perse, de imagens estranhas e claras que encantaram também T.S Eliot e Rilke que o traduziram e Marcel Proust que a evoca no seu Em Busca do Tempo Perdido.

“O Homem Fatal”, Nelson Rodrigues (Tinta da China)

Celebremos não apenas um mas três. Os três livros com que a editora Tinta da China inaugurou a publicação das obras de Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico, o escritor que gostava de olhar o mundo sempre pelo “lado que fede”. O Homem Fatal remete-nos para o tempo glorioso de quando a crónica era menos um género jornalístico e mais um género literário onde comungavam os escritores mais talentosos fazendo pequenas obras-prima numa coluna de jornal. Crónicas que nos devoram como Cronos (deus do Tempo e raiz da palavra “Crónica”) devorava os seus filhos. A juntar a este há ainda o livro de memórias A Menina Sem Estrela e os contos A Vida como Ela É.

O Pior

“Vem à Quinta-Feira”, Filipa Leal (Assírio & Alvim)

Numa carta a Eugénio de Andrade, Agustina escreveu com a sua habitual sageza: “A poesia não é feita de palavras, mas da cólera de não sermos deuses”. Ora um dos problemas da atual poesia portuguesa é que os poetas abdicaram de querer de si qualquer coisa semelhante ao divino. O livro de Filipa Leal é paradigmático de uma poesia que fica pela superfície.

[as escolhas de Joana Emídio Marques:]

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