Quando Gabi, um menino de dez anos, dá entrada no Hotel Palácio, no Estoril, todos ficam surpresos: com apenas dez anos chegou sozinho desde Antuérpia até ali. E procura um quarto. Foi naquele hotel que combinou encontrar-se com os pais, retidos na fronteira francesa. Como tantos outros, Gabi teve de fugir da seu país, assolado pela II Guerra Mundial. E, também como tantos outros, encontrou refúgio no Estoril, um pequeno paraíso pacífico à beira-mar. Mas o luxo, o clima e a beleza do local não tornam o exílio menos doloroso: Gabi está sozinho, longe da família, que não sabe se um dia voltará a ver.

Assim começa Estoril, romance de Dejan Tiago-Stankovic publicado agora em Portugal depois de já ter tido várias edições na sérvia, onde recebeu diversos prémios literários. E que traça um fresco do que ali se viveu durante a II GM: a espionagem e contra-espionagem, os jantares ostentosos que escondiam o sofrimento dos comensais refugiados e exilados, a mistura numa mesma sala de nazis e aliados, judeus e cristãos, vítimas e carrascos. Tradutor de Saramago para croata e de Ivo Andric para português, Dejan Tiago-Stankovic viu-se, também ele, numa situação de exílio forçado quando a guerra rebentou na Jugoslávia – estava em Londres. Casado com uma portuguesa, acabaram por se mudar para Portugal e é por cá que vive ainda hoje, trabalhando como tradutor.

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“Estoril”, de Dejan Tiago-Stankovic (Book Builders)

Acaba de publicar Estoril, um romance ali passado durante a II Guerra Mundial. Porque lhe interessou este período e este local?Sou apenas um contador de histórias. A minha arte é encontrar uma boa história e saber contá-la. Não é preciso inventar nada quando na vida real acontecem tantas coisas tão interessantes. Essa abordagem não é a mais original. Shakespeare fazia o mesmo. O tempo em que decorre o enredo do Estoril é o da Segunda Guerra Mundial, um período importantíssimo que deu uma grande lição à humanidade. Mas esse período, tão feio, já foi de tal maneira explorado em todas as formas de arte que acabamos por saber demais sobre ele. Nunca imaginei que qualquer acontecimento dessa época triste e já tão batida ainda me pudesse atrair. Mas aconteceu. A história de guerra portuguesa cativou-me por ser muito distinta de todas as outras que conhecia.

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Ao longo do livro narra vários episódios vividos por várias personagens. Há muitos casos verídicos ou são sobretudo ficcionais?
No meu ver a veracidade da ficção não é uma questão importante. A verdade é crucial na física, na matemática, em tribunal, mas na literatura não tem grande relevância. Importante é que a história contada pareça verídica e seja interessante. O leitor pode duvidar, pode sentir onde é que termina o documentário e começa a ficção, pode até consultar enciclopédias e googlar para verificar. Ou, em alternativa, pode deixar-se levar pela história e acreditar — tal como as crianças acreditam nos contos de fadas. Acho essa atitude mais agradável.

Estoril é protagonizado por um rapaz, Gabi, de apenas 10 anos, um refugiado que se vê sozinho em Portugal. Porque lhe interessou contar esta história do ponto de vista de uma criança?
Não consigo responder.

Como lhe surgiu esta personagem?
Não acho que o escritor deva falar sobre as suas personagens e dar explicações adicionais. O escritor faz a sua parte do trabalho – conta o que tinha que contar, da maneira que acha melhor. Depois é a vez do leitor cumprir a sua parte: ler, imaginar, interpretar. Sem isso leitura não faz sentido.

Pensou nos leitores mais jovens ao escrever?
Para mim escrita não é ganha-pão mas um hobby que se tornou trabalho, ou seja, escrevo por prazer. Quando escrevo não penso em público. As poucas vezes em que tentei agradar ao gosto dos outros, falhei. Assim, escrevo o que me agrada e há sempre mais alguém que gosta das mesmas coisas.

Esta não é apenas a história dos refugiados da Segunda Guerra Mundial. É também a história dos espiões, e contraespiões, que por esses dias trabalhavam em Lisboa. Aliás, a cidade era um verdadeiro pronto de encontro, o Hotel Palácio um microcosmos: refugiados judeus, aristocratas, ingleses, alemães, espanhóis… Foi também isso que o fascinou?
No Estoril, nos anos 40, estava-se numa situação de emergência, porém, não parecia. Num sítio paradisíaco, cruzava-se muita gente diversa, cada pessoa com o seu destino. Não pude falar só de uma mas também não pude pô-las todas. Eram muito mais do que alguma vez poderiam caber num livro. Optei por falar daqueles que mais mexeram comigo. Mas nenhuma dessas personagens têm o papel principal no romance. O Estoril, com o seu Casino e o Hotel Palácio, serviu de palco. O verdadeiro protagonista do livro é o Portugal dessa época. Se tivesse que resumir o romance numa só frase diria que se trata de um retrato de um país pobre e uma sociedade desigual numa época cruel, mas não muito trágica — neste lugar confortável e seguro as vidas não estavam em risco.

Ao ler o livro, e ao seguir os dias de Gabi, afastado dos pais e sozinho — mesmo que no conforto de um hotel de luxo — é impossível não pensar nos muitos refugiados que hoje tentam encontrar a segurança na Europa…
Ao longo da vida convivi com muita gente que se foi embora do seu lar e passou vida a tentar integrar-se num sítio que não é o seu. Uma inteira geração da gente formada partiu da Jugoslávia para encontrar refúgio noutro país. São centenas de milhares de pessoas. Conheci pessoas que saíram das zonas fustigadas pela guerra. Conheci vítimas de limpeza étnica. No Verão passado, passei bastante tempo a conviver com os refugiados sírios que passavam por Belgrado, fugindo da guerra. Quão horrível tem que estar o teu país para que decidas caminhar por 3000 quilómetros e forçar as barreiras de arame farpado para chegar à segurança? Tendo visto tudo isso, a única coisa que posso dizer com certeza é que o exílio, subjetivamente, é tão penoso para um pedinte como para um rei.

Nasceu na Sérvia. Saiu de lá também para escapar à guerra? Também foi a pensar na sua experiência que escreveu Estoril?
Nasci na Jugoslávia, da qual me lembro como sendo um país próspero, multicultural, não-democrático mas também não opressor. Admito que posso estar tocado pelo otimismo da memória da juventude mas ninguém me convence de que o país não era um lugar bom para viver. Saí de lá antes da confusão começar, não por razões políticas ou económicas mas pela curiosidade e pela aventura. Pouco tempo depois o país desfez-se, nalgumas partes deflagrou a incompreensível guerra civil e eu já não tinha para onde voltar — pelo menos por algum tempo.

Porque veio para Portugal?
Por razões pessoais. Em Londres casei-me com uma portuguesa, tivemos um filho e a vida em Londres tornou-se difícil sem apoio familiar. Na Sérvia a situação continuava péssima. Portugal pareceu-me um destino lógico.

E naturalizou-se português.
Naturalizei-me porque reunia condições legais para isso e porque me dava muito jeito ter um passaporte português – na altura com o sérvio não se podia viajar para lado nenhum. Tendo filhos portugueses não me pareceu estranho o seu pai ser um cidadão do seu país.

E porque adoptou um nome português?
O meu nome, Dejan Stanković, é usado por uma estrela de futebol internacional. É meu conterrâneo. Umas vezes abusei desse facto – nos aviões punham-me na primeira classe achando que eu era ele. Quando comecei publicar achei por bem assumir um nome artístico para evitar confusões. A questão era: que nome escolher? Lembrei-me então do nome Tiago, que neste caso não é um nome próprio mas sim um apelido. Graças à tradição portuguesa de os filhos ficarem tanto com o nome de família materno, como com o nome de família paterno, os meus filhos são Tiago-Stanković. Sempre achei esse apelido bonito, por ser representativo da sua dualidade cultural e, assim, usar o nome deles pareceu-me a escolha mais lógica.

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O autor nasceu na ex-Jugoslávia, viveu em Londres e acabou por emigrar para Portugal

Traduziu para português obras como A Ponte sobre o Drina e para sérvio autores como Saramago. Escolhe os livros que traduz?O primeiro livro sério que tentei ler em português foi o Memorial do Convento. Começa assim: “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou…”. Levou-me algum tempo a entender mas acabei por adorar. E por alguma razão quis ver como soava em sérvio. Foi assim que comecei a traduzir. Depois descobri que a obra de Saramago ainda não estava traduzida, e que eu, por ser o pioneiro, podia fazer uma coisa tão importante como é traduzir essa obra-prima – e várias outras. O mesmo aconteceu com as traduções de servo-croata para português. Havia muito poucas traduções, quase sempre feitas através de terceiras línguas. Mais uma vez tive a oportunidade de escolher os livros de que mais gosto para os traduzir. Em todas essas escolhas sempre tive um único critério: traduzir os livros que tenho pena de não ter escrito. Ao traduzi-los fico com a falsa mas agradável impressão de que contribuí para a sua beleza.

Como são recebidos os escritores portugueses na Sérvia?
Não passo tempo suficiente em Belgrado para saber responder. O que sei é que Portugal está na moda. A literatura portuguesa, na sua medida, também está. O apoio do Governo português à divulgação da literatura nacional ajudou a que muitos títulos fossem traduzidos. Formou-se uma nova geração de tradutores literários que trata disso. Eu só sei que as traduções de Saramago, que fiz já há muito tempo, tiveram entretanto inúmeras edições e que, durante 20 anos, têm estado sempre nas livrarias. Outro escritor português publicado na sérvia que sigo com bastante atenção sou eu (risos). E estou satisfeito com a receção, tanto da crítica literária como do público. O meu editor afirma que Estoril é “estupidamente consensual”.

Como foi traduzir Saramago?
Quanto mais rigorosa for a escrita, menos difícil é traduzi-la. A escrita de Saramago é muito rigorosa, de uma forma peculiar. Por isso, ao traduzi-lo, nunca tive necessidade de grande contacto com ele. Conhecemo-nos melhor só em 1999, na altura dos bombardeamentos de Belgrado pela NATO. Como prémio Nobel recente Saramago foi uma das primeiras figuras públicas a pronunciar-se contra a guerra. Fiquei-lhe muito grato. Ele e Pilar contactaram-me várias vezes para me oferecer um ombro para chorar. A gente da escrita é muito empática.

Estoril foi muito bem recebido na Sérvia. O que lhe diziam?
Já está na quinta edição. Foi premiado e, na medida do possível, já que se trata de um mercado pequeno, até conseguiu ser um sucesso comercial. Mas o número de exemplares vendidos não me diz muito. Para mim o mais importante é saber que efeito provoca nos leitores aquilo que escrevi. Quais são as emoções e sentimentos que um livro teu, que tem só papel e letras mortas, consegue provocar em pessoas que não conheces? Hoje, através das redes sociais, os leitores vêm ter comigo e partilham as suas impressões. Essas conversas mostraram-se muito mais úteis do que alguma vez imaginei. Com elas aprendi que a beleza está no olho do observador e que um escritor não deve explicar muito a sua obra. As pessoas que sabem ler topam tudo. Sem dicas.