Numa altura em que a igualdade de género só era debatida ao nível das calças de bombazine unissexo que meninos e meninas usavam, eu era uma criança bastante avessa ao encantado mundo das princesas. Nunca me quis mascarar de Cinderella e o meu primeiro trauma de infância remonta ao cinema do meu bairro, do qual tive de ser retirada num berreiro por ter medo do filme da Branca de Neve. Sem ter um sustentado discurso feminista por trás (estava mais ocupada a comer Sugus e a ser péssima no jogo do elástico), sempre me meteu confusão a aura de indefesa em busca de marido com cavalo branco próprio. Entre collants rasgados e cabelo desgrenhado, nunca ninguém me dizia a frase feita “pareces mesmo uma princesinha”. Óptimo, porque ser uma princesa era uma seca. Até que apareceu a Princesa Leia na minha vida.

Vi os filmes da Guerra das Estrelas já pelos anos 80 a dentro, na televisão, em sessões do mítico “Lotação Esgotada” gravadas para a posteridade em cassetes VHS compostas com caixas próprias com a capa que vinha nas revistas de televisão. Única personagem feminina de efectivo relevo, a Princesa Leia tinha uma arma fixe, um penteado prático para correr dentro da Estrela da Morte sem ter cabelo nos olhos e não tinha problemas em dizer ao bad boy de serviço o quanto gostava dele (esta última parte era mesmo ficção cientifica para uma mini Susana que preocupava professores por ter o grau de extroversão de uma coluna jónica em mármore).

Há que perceber que isto simplesmente não existia, pelo menos no entretenimento mainstream. Quem é que eu tinha mais? A She-Ra, irmã fajuta do He-man que lutava contra o mal envergando umas nada práticas botas douradas pelo joelho e com salto agulha? A Ana dos Cabelos Ruivos? A tonta da Lois Lane que não percebia que o Super Homem era o Clark Kent sem dioptrias? Faltavam talvez 15 ou 20 anos para storytellers como a Disney ou a Marvel arriscarem a sério em lutadoras protagonistas femininas. Por isso tínhamos a Leia para nos dizer que é possível não ser só a donzela desesperada (e também para nos alertar para o risco de beijarmos o nosso próprio irmão).

A carreira de Carrie Fisher (que foi inclusivamente dramaturga e guionista) não se esgota nos redondos carrapitos laterais de Leia, mas é um legado que a própria já abraçava com mais carinho e menos amargura por tal colosso da história do cinema lhe ter quase asfixiado o restante percurso profissional. A última vez que a vamos ver no grande ecrã vai ser exactamente em “Star Wars: Episode VIII”, a estrear num 2017 que se espera menos chacinante. Deve tanto de bom como de mau à saga que a catapultou, mas até no mau Carrie mostrou que era feita de uma massa de rolemodel inequívoca. Assombrada por problemas com drogas e álcool, assim como por doenças do foro mental, Fisher foi ainda mais heroica quando se mostrou altamente imperfeita e mundana.

Em 2008 lançou a biografia Wishfull Drinking, onde mostrou que não precisava do espaço sideral para ser uma rebelde: bastava-lhe abraçar com candura o estigma da doença. “Uma das coisas que mais me faz confusão é como há tanto estigma a pairar sobre a doença mental, sobretudo a bipolaridade. Viver com uma depressão requer uns tomates do caraças. Se vives com esta doença e consegues funcionar de todo, isso é algo que te devia orgulhar e não envergonhar”. Se isto não é para nos desejar que a força esteja sempre connosco, não sei o que seja.

Susana Romana é argumentista e professora de escrita criativa

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