Quando C.S. Lewis começou a sua carreira académica no St. Magdalene’s College, de Oxford, teve uma certa desilusão com os seus colegas de ofício. Os doutos lentes escassos interesses tinham em comum com o solitário Clive Staples (ou Jack, como chamava a si próprio); Lewis, além de formado em Filosofia e Literatura Inglesa, era dono de uma paixão vinda já dos tempos de colégio pelas lendas e mitos nórdicos, paixão essa que pouco dizia aos seus colegas académicos.

Nas cartas desalentadas ao irmão e aos amigos mais chegados, com longas jeremiadas sobre os primeiros e pouco interessantes anos de Oxford, demora a surgir um ténue entusiasmo. Numa carta a Warnie Lewis, Clive conta que chegara tarde a casa porque passara o serão numa proveitosa conversa com outro professor: J.R.R. Tolkien, filólogo de grande sabedoria, conseguira por fim prender a atenção do exigente Clive Lewis.

O primeiro contacto entre os dois não terá sido tão amigável. Tolkien era já professor em St. Magdalene (Lewis era apenas leitor) e apresentara, pouco depois de Lewis começar a sua actividade docente, uma proposta para reformar o ensino de Inglês em Oxford. Esperava que se desse muito mais atenção à literatura medieval, com Chaucer à cabeça, e até mesmo à literatura Saxónica ou Gaélica, em vez de se deificar Shakespeare e estudar minuciosamente a literatura dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Lewis, leitor apaixonado de Milton e Shakespeare, votou contra a proposta do excêntrico professor de literatura Medieval: começo pouco auspicioso para uma amizade que haveria de contrariar o seu início.

Lewis, apesar desta primeira dissidência, acabou por ser convidado para umas estranhas sessões que Tolkien organizava, pouco mais de uma vez por mês: foi aí, enquanto libavam à literatura e trabalhavam sem mais ganho do que o prazer da erudição, que os dois escritores em potência começaram a conviver mais intimamente.

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Um livro no Coalbitar

Tolkien, apaixonado pelas lendas e línguas nórdicas, organizava num pub um grupo a que chamava Coalbitar, dedicado a estudar a literatura islandesa. A plêiade oxfordiana, vertida de novo em aprendizes às ordens de Tolkien – o único que dominava a língua – tinha obrigação de traduzir, de sessão para sessão, uma série de excertos islandeses que eram depois corrigidos e comentados pelo grupo.

É impossível saber se terá sido o afinco de Lewis, também ele apaixonado pelos mitos nórdicos, apesar de não dominar os idiomas, a estreitar a amizade entre os dois; certo é que, depois de algumas sessões, já Tolkien escrevia nas suas notas como era consoladora a presença de Lewis em Oxford, e Lewis contava aos amigos quão interessante era Tolkien. A amizade terá fortalecido mais ainda quando, conhecedores das ambições literárias mútuas, Tolkien decidiu partilhar com o comparsa um poema que tinha escrito sobre um dragão. A crítica de Lewis foi apaixonante: para fazer jus ao tom épico do poema, respondeu como um filólogo encartado diante uma obra-prima há muito estudada. Quando não lhe agradava uma palavra, sugeria que no manuscrito original haveria uma falha que tornava imperceptível a palavra; se desgostava de um verso, propunha uma alternativa, não como sua, mas como se tivesse sido encontrado um códice, numa biblioteca, que tinha uma versão alternativa.

Tolkien terá gostado, porque o imaginário que contorna o Senhor dos Anéis, já em desenvolvimento no poema, persistiu; a ideia também terá sido proveitosa, já que Tolkien usou o mesmo esquema literário anos depois no Hobbit; os conselhos, no entanto, não foram todos adoptados: a mesma diferença estilística que já levara a lados diferentes na questão do ensino também se revelava na poesia. Lewis tinha ainda um estilo mais empolado, herdeiro dos retóricos modernos, contrastando com a simplicidade linguística (apesar da complexidade temática) de Tolkien.

C.s.lewis

Clive Staples Lewis (1898-1963)

No entanto, muito mais importantes do que as diferenças estilísticas, já de si debatidas, eram as diferenças religiosas constantemente discutidas. Lewis percorrera o caminho típico da mocidade: liberto da escola dominical, entregara-se a um ateísmo militante na adolescência, progressivamente substituído pela crença em Deus como possibilidade intelectual, até chegar a uma crença em Deus (diferente do Deus popular, claro está) como hipótese mais provável.

Tolkien, por outro lado, era um ultra-ortodoxo católico Romano, avesso a todas as doutrinas liberais e modernistas que se iam disseminando pela Igreja. Órfão desde criança, vivera primeiro num internato Romano, antes de ser entregue à responsabilidade de uma senhora da confiança dos oratorianos. Ao contrário de Lewis, nunca se rebelara contra a religião: a sua fé, aliás, ia-se cevando no seu amor pela mitologia e pela linguística, a par, aliás, do que acontecera com uma das grandes figuras da congregação do oratório que o educara: o famoso Cardeal Newman. A Religião terá sido debatida não poucas vezes por Tolkien e Lewis; em Lewis ia crescendo o interesse pelo tema que inspirara tantos dos seus escritores favoritos; em Tolkien, por outro lado, porfiava o espírito prosélito e a esperança de conversão de um amigo.

Segundo os testemunhos de ambos, parece que uma conversa sobre a Verdade dos mitos (tema recorrente) terá tido grande importância na conversão de Lewis. As etapas dessa conversão estão descritas no seu Pilgrim’s Regress, ao mesmo tempo paródia e homenagem ao livro de Bunyan. Nele, Lewis descreve todas as suas resistências, desde o tempo em que não considerava os Evangelhos verdadeiros, até ao tempo em que não os considerava importantes. A obra, uma verdadeira apologia do Cristianismo, terá tido grande inspiração nestas conversas com Tolkien que animavam os longos passeios que gostavam de dar. Depois da sessão de Islandês, caminhavam juntos até casa de Lewis, e em breve passaram a dar também passeios de manhã.

Tolkien, verdadeiro apaixonado dos mitos, gostava de explicar como também a própria imaginação é criatura de Deus, pelo que também revela o seu criador. Lewis, resgatado do desalento académico por esta amizade inesperada, deixava-se contagiar pela alegria da conversão.

Os Inklings

Foi esta mistura que esteve na origem de um dos grandes grupos literários do século XX. Enquanto os grupos de Bloomsbury ou da Brasileira, do Café Gelo ou do Botequim, era mais manifestações de tendências e de atitudes intelectuais, os Inklings, que Lewis e Tolkien encabeçavam, eram uma mistura quase cómica de alegria cristã, rigor académico e erudição mitológica.

Quando o ímpeto dos estudantes de islandês foi esmorecendo, Tolkien decidiu ordenar as suas férteis conversas com Lewis. Além de se juntarem no passeio de segunda-feira de manhã, encontravam-se também às terças-feiras à noite num pub chamado Inkling, com quem se quisesse juntar. Juntou-se indefectivelmente Charles Williams, escritor de culto e amizade forte de Lewis, e por vezes Roy Campbell (o tradutor inglês de Pessoa), Hugo Dyson, Owen Barfield ou Warnie Lewis, entre outros. Ao contrário da maior parte das tertúlias literárias, mais vezes depósitos de má-língua ou simples amizade, estas eram tertúlias em que, de facto, a literatura ocupava o papel principal.

Os primeiros serões deram-se a pretexto de um livrinho que Tolkien estava a escrever, a que tinha dado o estrambólico nome de Hobbit. Todas as terças-feiras trazia os seus progressos e lia-o à plateia. Os amigos escutavam-no atentos e depois comentavam: fizeram-no com o Hobbit e com a sua continuação, que só no fim se passou a chamar Senhor dos Anéis; mas também o fizeram com as Screwtape Letters, ou as Crónicas de Nárnia, de Lewis e com uma série de livros de Charles Williams.

A plateia era variável – naturalmente, o êxito mundial do Hobbit, primeiro, e das Screwtape Letters, depois, entusiasmou os ouvintes – mas a constância das reuniões e o seu fito, isso não variava. Mal alguém se desviava do assunto, Tolkien, com mão-de-ferro, guiava-o de volta para o texto. Depois da leitura sim, podia a conversa derivar para vários assuntos, mas o texto era o principal.

Os Inklings duraram muitos anos. Foram acabando, como qualquer grupo, tanto que, quando Lewis se transferiu para Cambridge, já o seu contacto era mínimo. Tolkien já mudara de casa para mais longe da Universidade, Lewis também já tinha outras amizades, pelo que o grupo, sustentado principalmente pela comunhão dos dois escritores, foi morrendo aos poucos. Para a história fica um grupo de literatos fascinados pelo mundo e pela imaginação, que reverenciavam o mistério à sua volta e tratavam assuntos sérios sem se levarem demasiado a sério.