“Empresa abutre”, “escravatura moderna”, “presença hegemónica de uma multinacional estrangeira” ou “fraude económica”. No dia em que a Assembleia da República discutiu duas petições contrárias sobre o mesmo assunto – a atividade da Uber em Portugal -, as reações mais inflamada vieram dos partidos da ala esquerda.

Para o deputado do PCP Bruno Dias não há dúvidas: “Se é para darem privilégios a multinacionais, não contem com o PCP“. Do lado do Bloco, Heitor de Sousa acrescenta algo que diz ser “indesmentível”: “A Uber exerce uma atividade à margem de qualquer enquadramento legal“.

A polémica que já levou milhares de taxistas à rua começou há cerca de dois anos, mas a avaliar pela intervenção dos vários grupos parlamentares na tarde desta quinta-feira, parece estar longe do fim. Da esquerda à direita, todos parecem querer o mesmo: regular o setor do transporte de passageiros em viaturas privadas, tornando-o mais igualitário. Mas não faltaram críticas à forma como o Governo tem tentado solucionar. Nem pelos partidos da “geringonça”.

Queixando-se da “presença hegemónica” da Uber, que tem contado com “a passividade dos seus intervenientes”, Bruno Dias, deputado do PCP, afirmou que ter “um melhor serviço de transporte” é um objetivo pelo qual o partido vai continuar a lutar, mas que “ninguém defenderá que, à pala desse objetivo”, se incluam “empresas que atuam acima da lei”.

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Isto não é uma questão de tecnologia e de modernidade, é uma questão de legalidade“, disse. Bruno Dias acrescentou que aquilo que se estava a passar hoje, “no terreno”, era “uma situação revoltante de total impunidade” dos ilegais.

O deputado do PCP referia-se ao decreto-lei que foi aprovado na Assembleia da República em novembro, que visa o combate aos serviços ilegais de transporte em táxi e cuja ausência de fiscalização já levou os taxistas a pedir uma reunião “com carácter de urgência” ao Governo. Sobre esta matéria, o PCP informou que já questionou, igualmente, a ministra da Administração Interna.

Heitor de Sousa, do Bloco de Esquerda (BE), foi mais além. Diz que nos processos judiciais que envolveram a Uber, “a justiça não foi lenta, foi letra morta”, acusando que “quem devia fazer cumprir a lei, não o fez“. Mais: utilizou o termo “escravatura moderna” para classificar as condições em que os motoristas que efetuam serviços para a Uber trabalham — e que foi denunciada esta segunda-feira numa reportagem publicada no Observador.

“Já se percebeu que esse serviço de transporte não é só uma fraude económica, como nunca será o el dorado anunciado” pela Uber que anuncia que os motoristas podem ganhar “valores de 1400 euros por mês”, afirmou o deputado do BE. Para Heitor de Sousa não podem existir as “partes abusivas” que caracterizam o serviço de “uma empresa abutre como a Uber”.

“Não defendemos a exclusão. Há lugar para todos”

A questão que envolve as condições em que trabalham os motoristas também não passou despercebida para o PS. O deputado António Eusébio referiu que é preocupação do partido “salvaguardar um serviço que garanta a segurança dos seus utilizadores e cumpra com os direitos dos trabalhadores“.

Admitindo que na legislação portuguesa não está previsto este tipo específico de serviço e que as “novas tecnologias não têm correspondência com o quadro legal em vigor”, António Eusébio frisou que “é preciso criar um sistema robusto” que proteja os direitos dos utilizadores, a autonomia das esferas privadas e que devem ser acautelados os interesses dos trabalhadores, cumprindo o que está inscrito no Código do Trabalho.

Paulo Neves, do PSD, acrescentou que a lei laboral tem de se aplicar a todos os trabalhadores, protegendo-os e dignificando o seu trabalho. “O PSD defende uma rigorosa legislação, que defenda os direitos de quem utiliza e de quem trabalha na mobilidade urbana. E isto aplica-se a taxistas e a estas plataformas”.

O deputado acrescentou ainda que “é errado ‘ideologizar’ esta questão” e que os taxistas devem aproveitar a tecnologia para melhorar a qualidade dos seus serviços. “Não defendemos a exclusão. Há lugar para todos“, referiu Paulo Neves.

José Luís Ferreira, d’Os Verdes, acrescentou que é preciso “impedir que as atividades ilegais continuem a instalarem-se como se fossem uma atividade normal”.

Para Hélder Amaral, do CDS-PP, é importante “garantir um regime legal compatível com estes dois modelos” e exigiu uma resposta do Governo para um problema que já começou há dois anos. “É preciso encontrar mecanismos para que os táxis se possam modernizar”.

Rebuscando os elogios feitos a eventos como a Web Summit, o deputado lembrou que para apostar na inovação e no empreendedorismo também é preciso ter em conta o impacto que a disrupção tem nos modelos já existentes. “Não podemos ter o melhor de dois mundos”, disse.

A guerra que divide a Uber e as empresas de táxi tem sido marcada pelos diversos protestos dos taxistas e por um processo judicial que terminou com o Tribunal da Relação de Lisboa a anular a providência cautelar interposta pela ANTRAL em 2015. O Governo já aprovou, em Conselho de Ministros, uma proposta de regulamentação para o setor, que envolve táxis e os chamados veículos descaracterizado — onde se incluem a Uber e a Cabify –, mas que ainda terá de ser apreciada na Assembleia da República.