Qual é o cúmulo da improbabilidade? Adeus de Quaresma e Ronaldo

Fernando Santos assina pelo Sporting em Junho 2003. É o eleito para suceder ao romeno Laszlo Bölöni e abraça o desafio com um sorriso grande, enorme, XXL. Pois claro. Só para dar uma ideia do talento em Alvalade, basta mencionar os nomes de Quaresma e Ronaldo. Um joga enormidades, o outro enormidades joga. Juntos, é o cabo dos trabalhos para qualquer defesa, seja ele veterano ou menino de coro. Com Quaresma de um lado e Ronaldo do outro, o Sporting é um sério candidato ao título de campeão nacional. Sem reservas.

Fernando Santos inicia a pré-época no primeiro dia de Julho, em Alcochete. De manhã, exames médicos. À tarde, a primeira conferência de imprensa. Os jornalistas acotovelam-se para saber as novidades sobre o reforço do plantel com um central e um avançado, na sequência das saídas dos brasileiros André Cruz e Jardel. A ideia de Santos é o paraguaio Gamarra e, quem sabe, o chileno Salas. Nem um nem outro, viriam os brasileiros Polga e Liedson. E mais, e mais? Está mais para o menos: na primeira semana de treinos, Santos perde Quaresma para o Barcelona. Cabuuum, é a primeira baixa de vulto. O negócio faz-se num estalar dedos, com Rochemback a fazer o caminho inverso, e o Sporting encaixa seis milhões de euros. Um mês depois, em Agosto, o Sporting inaugura o Estádio José Alvalade e ganha 3-1 ao United. A figura é Ronaldo. Os dribles desconcertantes, as arrancadas súbitas e a ginga de corpo sugam a energia de O’Shea, seu marcador directo. No banco, até Alex Ferguson se surpreende com a fantasia infinita daquele rapaz. Nessa mesma noite de 6 de Agosto, o United acerta a contratação de Ronaldo. Caabbbuuuummmmm, é a segunda baixa de vulto. Os dois extremos saem de fininho e separam-se de Santos. Até quando?

Qual é o cúmulo da improbabilidade? Derrota em casa com a Albânia

O sorteio da fase de apuramento para o Euro-2016 inclui Portugal no grupo i, com Dinamarca (22.ª do ranking da UEFA), Sérvia (27.ª), Albânia (42.ª) mais Arménia (51.ª). Passam automaticamente os dois primeiros classificados. Ou seja, impossível falhar a qualificação, sobretudo quando se começa em casa e com a Albânia. Mesmo sem o capitão Ronaldo (lesionado), não há desculpas. Pior do que jogar sem balizas nem acertar três passes seguidos é não encostar a Albânia à sua área nos 43 minutos entre o 1-0 de Balaj e o apito final do francês Buquet. A selecção tem uma gritante falta de imaginação, Paulo Bento idem idem. Quem é a sua última cartada para dar a volta aos acontecimento? Miguel Veloso. É a substituição que ninguém quer ver nem ouvir e todos vão falar. Não há explicação para ir buscar os discos riscados com os novos à disposição do freguês (Adrien, por exemplo).

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No final, o discurso do seleccionador totalmente alheio à realidade. “Nos últimos 20 minutos da primeira parte, não estivemos tão bem. Na segunda, entrámos bem e levámos um golo na única oportunidade.” E os lenços brancos? “Apesar de achar o resultado completamente injusto, se começamos a pôr já tudo em causa, não me parece que seja o melhor caminho.” O melhor é arrepiar caminho antes que seja tarde. Pensa o povo, julga a federação: Bento sai, Santos entra.

Qual é o cúmulo da improbabilidade? Olá de Quaresma e Ronaldo

Onze anos depois, eis Santos com Quaresma e Ronaldo. Juntos, ao vivo e a cores. Finalmente. No discurso da apresentação, a palavra vitória em destaque. “No futebol, não existe outra palavra que não seja ganhar.” E arrepiamos caminho com sete vitórias seguidas, todas pela diferença mínima. A primeira de todas é em Copenhaga, com a Dinamarca. Aos 90-e-tal minutos, Quaresma cruza da direita e Ronaldo cabeceia para o golo. É o 1-0, é o início de uma epopeia formidável. À custa de dois golos de Moutinho (1-0 à Dinamarca, em Braga, e 2-1 à Sérvia, em Belgrado), a selecção confirma o primeiro lugar do grupo e ainda o estatuto de cabeça-de-série para o sorteio da fase final. Como se fosse um truque de magia, a sorte acompanha-nos em toda a linha. Que dizer de um grupo com Islândia, Áustria e Hungria? Juntas, acumulam três presenças em Europeus. Portugal tem mais do dobro (7).

Qual é o cúmulo da improbabilidade? Hat-trick de lesões

Pim (Coentrão), pam (Danny), pum (Bernardo): em três tempos, Santos perde três indiscutíveis dos 23 convocados para o Europeu. No dia 11 de Abril, durante o treino de preparação para o jogo com o Lille, o lateral do Monaco contrai uma rotura muscular na coxa direita. O tempo de paragem está previsto de três a seis meses – só voltaria no final de Outubro. Uma semana depois, durante o Zenit-Spartak Moscovo para o campeonato russo, Danny é substituído aos 31 minutos, vítima de uma rotura de ligamentos cruzados e menisco do joelho direito. A paragem é de oito/nove meses, Danny só está apto em 2017. Já chega, não? Não, ainda não. Falta mais um. A 11 de Maio, no treino de véspera do jogo com o Montpellier, para a última jornada do campeonato francês, Bernardo Silva agarra-se à coxa direita. O veredicto clínica é uma paragem mínima de três semanas. Ora bem, Santos não corre esse risco, embora Bernardo seja uma aposta muita sua, como titular nos últimos seis jogos da qualificação. No anúncio dos convocados, na noite de 17 de Maio, Santos deixa Bernardo de fora e abre a porta a Renato.

A estes três azarados, nunca é demais lembrar o primeiro caso de todos: Tiago. A 28 de Novembro de 2015, o médio do Atlético Madrid (ostracizado por Bento, recuperado por Santos) lesiona-se na tíbia direita durante o 1-0 ao Espanyol e sai de maca no Vicente Calderón. Menos de uma semana depois, o plantel do Atleti entra em campo com uma t-shirt de apoio ao português. Aos 34 anos de idade, Tiago demora cinco meses e meio para recuperar. No regresso à competição, em Maio, a compreensão por já estar afastado dos eleitos de Santos. “Era complicado, só joguei 10/15 minutos antes da convocatória. Sinceramente, nem estou tão preparado quanto os meus companheiros. Por isso, só me resta aceitar Santos e apoiar a selecção.”

Qual é o cúmulo da improbabilidade? Penálti falhado por Ronaldo

Santos tem o discurso da vitória na cabeça. No dia da chegada a França, a ideia é transmitida sem rodeios aos jornalistas. “Acredito convictamente que podemos ganhar o Euro’2016. Podia acreditar só porque é bonito de dizer e podia acreditar só porque é bonito passar uma mensagem para o exterior. mas não. Logo desde o início, quando cheguei à selecção, disse aos jogadores que tenho como sonho atingir a final do Europeu e ser campeão europeu.”

Saint-Étienne, 14 Junho. O primeiro adversário é a estreante Islândia. Aos 31′, um-zero para nós. Lance entre André Gomes e Vieirinha, conclusão de Nani. Fixe bem este momento, é um dos raros de todo o Europeu em que a selecção está em vantagem. Até aos 50’, altura em que Carvalho avança, Pepe idem idem e Vieirinha aspas aspas. O único quieto, quietinho é Bjarnasson e toma lá disto ò Patrício: 1-1. Acaba assim. O próximo objectivo é ganhar à Áustria.
Paris, 18 Junho. Dos quatro remates à baliza de Ronaldo, três vão à baliza e só não entram por obra e graça do afoito Almer, em noite siiiiiiiiiiiiiim. O outro é aquele penálti. O lance até é bem típico (bola para um lado, guarda-redes para o outro), o problema é ali o poste a dar um ar da sua (des)graça. Diz, e bem, Santos: “O próximo jogo é uma final. Vamos chegar à final e vamos ganhá-la.”

https://www.youtube.com/watch?v=7Mda7MTyDc4

Qual é o cúmulo da improbabilidade? O herói islandês Traustason

Lyon, 22 Junho. A Hungria marca um, dois, três golos. Portugal corre sempre atrás do prejuízo. Sempre. Ronaldo assiste Nani no 1-1 antes do intervalo, Ronaldo marca de calcanhar o 2-2 e Ronaldo salta como só ele sabe para o 3-3. Os últimos minutos são desconcertantes, só Ronaldo está animado para atacar. Todos os outros dez jogadores instalam-se no meio-campo e defendem a vantagem. Sim, a vantagem do 3-3. Santos até faz entrar Danilo para encostar a William e segurar o empate. Quando acaba, há dúvidas no ar. Três jogos, três pontos, isso é óbvio. Falta o resto. As câmaras evidenciam um diálogo de surdos entre Ronaldo e João Mário, ainda no meio-campo, como que a perguntarem “e agora?”.

Agora, Portugal é segundo classificado do grupo e apanha a Inglaterra, em Nice. Ou então… No período de descontos do outro jogo do grupo, um contra-ataque da Islândia é finalizado por Traustason e sela-se o 2-1 à Áustria. De repente, Portugal apura-se para os oitavos-de-final como um dos melhores terceiros classificados. De repente, evitamos a Inglaterra em Nice e saltamos para o bloco de cima da tabela de jogos, sem a presença dos quatro campeões (Espanha, Itália, Alemanha e França). Só Santos é que percebe isso. Conta Quaresma. “No final desse jogo, levámos o maior sermão de Santos naquele ano e meio. Ele simplesmente não entendia como estávamos amuados e com caras de poucos amigos. Disse-nos que estávamos lançados para a final, por um caminho mais acessível. Percebemos o seu ponto de vista e animámos, claro.” Na conferência de imprensa, Santos assume o jogo. “É de louvar o espírito dos nossos jogadores: em três vezes estivemos a caminho de casa e assumimos o jogo. Com 3-3, tentámos pressionar a saber que corríamos um risco desnecessário de ir para casa pensámos ‘calma lá, que este resultado garante’. Uma derrota punha-nos fora completamente. Nos últimos minutos tentámos marcar, mas não de qualquer maneira.”

Qual é o cúmulo da improbabilidade? A rosca de Nani e o golo de cabeça de Quaresma

O calendário até à final compreende jogos com Croácia, Suíça ou Polónia e Bélgica. Lens, 25 Junho. Joga-se então com a Croácia, líder-surpresa do grupo da Espanha. O jogo é morno, sem ponta por onde se pegue. É o primeiro de sempre na história do Euro sem qualquer remate à baliza em 90 minutos. Aborrecido? Santos discorda em absoluto. “Aborrecido foi para os croatas, que foram para casa. No futebol não há essa questão do bonito e feio. No futebol, ou se joga bem ou se joga mal. Do outro lado estava a Croácia, uma candidata a ganhar este Europeu. A arte de defender também é uma grande arte no futebol.” Quem fala assim não é gago.

No prolongamento, a única seleção com querer é a croata. Nós, quando muito, queremos os penáltis. Ou então não. Aos 117’, Patrício desvia um remate de Perisic para o poste e, acto contínuo, Ronaldo rouba a bola para iniciar o contra-ataque. Renato corre meio-campo e lateraliza para Nani, cujo remate-rosca encontra Ronaldo sozinho no outro poste. Subasic defende o remate do capitão e já nada pode fazer para impedir o cabeceamento de Quaresma, quase em cima da linha de golo. Sem saber ler nem escrever (e com dois trincos em campo: ao titular William acrescente-se o recém-entrado Danilo), a selecção defende a vantagem de forma atabalhoada. Tanto assim é que Vida falha o empate por centímetros aos 120’+1. Siiiiiiga.

Qual é o cúmulo da improbabilidade? A eficácia nos penáltis

Marselha, 30 Junho. O onze vs Polónia é diferente do habitual e contempla seis jogadores de clubes nacionais, a avaliar pelos quatro sportinguistas Rui Patrício, William, João Mário e Adrien mais os dois benfiquistas Eliseu e Renato Sanches (atenção, é o último dia de contrato do miúdo na Luz). Ora aí está uma situação sui generis, hein?! Excepção feita às gerações do Mundial-66, Euro-84 e Mundial-86, em que os onzes fazem-se única e exclusivamente de equipas portuguesas, o caminho da globalização torna-se presente, muito presente, nas escolhas dos seleccionadores. Primeiro através de Couto (Parma), Paulo Sousa (Juve), Figo (Barça) e Rui Costa (Fiorentina) em 1996, depois com Jorge Costa (Charlton), Abel Xavier (Everton) e Paulo Bento (Oviedo), entre outros, em 2000.

O começo do jogo com os polacos é o mais desastroso possível: Cédric escorrega e abre uma auto-estrada para Grosicki. O cruzamento apanha toda a defesa desprevenida e disso mesmo se aproveita Lewandowski para o pontapé certeiro. O seu primeiro em todo o Euro – ele que fora o melhor marcador da fase de qualificação, com 13 golos. Como é seu timbre, Portugal de Santos responde à altura. Já se vê isso vs Sérvia (Luz e Belgrado) e Arménia (Erevan). E, já agora, vs Hungria. Em dose tripla. Com a Polónia, não há cá regra à excepção. Renato tabela com Nani e enche o pé para o golo. Daí para a frente, é um triste fado de futebol sem balizas. Penáltis, aí vamos nós: Ronaldo, golo. Renato, golo. Moutinho, golo. Nani, golo. Quaresma, victoire. Cinco marcadores, cinco golos. Cem por cento de eficácia. Ora aí está algo nunca visto na história da selecção, dos seniores aos sub-16. Há sempre alguém que falha. Sempre. No Euro 2004, com a Inglaterra, é Rui Costa quem atira por cima. No Mundial-2006, novamente com a Inglaterra, tanto Hugo Viana como Petit acertam no poste. No Euro-2012, Moutinho permite a defesa de Casillas enquanto Bruno Alves bate na trave (salvo seja). Muito bem, é o primeiro caso de 100% de eficácia na selecção AA. Aplaudamos o caso exemplar. Pelo meio, Patrício defende o remate de Kuba. Meias-finais, aí vamos nós.

Qual é o cúmulo da improbabilidade? A surpresa Gales

Dizíamos, o percurso de Portugal até à final tem três adversários: Croácia (check), Polónia ou Suíça (check) e Bélgica. Errrrrr, a Bélgica é arrumada por Gales sem apelo nem agravo. Acaba 3-1. Estendem-nos a passadeira vermelha até Saint-Denis. Lyon, 6 Julho. Portugal arruma Gales e consegue a primeira (e única) vitória de sempre por dois golos de diferença na era Fernando Santos. Primeiro é Ronaldo com aquele cabeceamento sublime (um salto de 76 centímetros), a cruzamento de Raphaël Guerreiro na sequência de um canto de João Mário. É o seu nono golo em Europeus e iguala o francês Platini na liderança dos melhores marcadores de sempre da competição. Desses nove golos, cinco de cabeça. É cada vez mais o rei do jogo aéreo à frente de Shearer, Klose e Charisteas, todos com três. Ainda Gales está meio perdido e toma lá o segundo, por Nani, em esforço, no chão, a desviar um remate de Ronaldo para a baliza. Dois-zero, vamos à final. Só falta decidir o adversário: França ou Alemanha?

Qual é o cúmulo da improbabilidade? A lesão de Ronaldo e o golo do suplente Éder

Paris, 10 Julho 2016. Sai-nos a França na rifa. Portugal tem a palavra, em pleno Stade de France. Em Outubro 2014, Santos estreia-se ao serviço da selecção com quatro proscritos de Paulo Bento: Tiago, Danny (titulares), Ricardo Carvalho e Quaresma (suplentes). Onde? No Stade de France. É um particular com França. Perdemos 2-1. No balneário, Santos junta os jogadores e… “assumimos um objetivo, traçámos um propósito: o de voltar aqui a Saint-Denis, a 10 Julho.” Meu dito, meu feito. Venha de lá o Maracanazo, s’il vous plaît.

O onze é Patrício, Cédric, Pepe, Fonte, Raphaël, William, Renato, Adrien, João Mário, Nani e Ronaldo. Aos oito minutos, Payet acerta em Ronaldo e o capitão nunca mais é o mesmo. Chora. Muito. Para o seu lugar, entra Quaresma aos 25’. Só voltará ao relvado na segunda parte, para dar apoio aos jogadores desde o banco de suplentes. No prolongamento, mais se parece com o adjunto de Santos a dar instruções de forma enérgica na área técnica. Ao seu lado, Santos é mais comedido nos gestos. E certeiro na substituição: aos 79’, sai Renato, entra Éder. Xiiiiii, o Éder. Agora é que é. O avançado faz tudo bem daí em diante: domina bem, passa melhor e ganha faltas, um monte delas. Aos 109’, Moutinho rouba a bola a Griezmann e entrega para Quaresma. O resto é história. De Portugal. O remate de Éder é espontâneo, fora da área. Lloris estica-se todo e não a apanha. É o 1-0.

https://www.youtube.com/watch?v=2sLzni2hEMM

Qual é o cúmulo da improbabilidade? O dedo de Santos

Fernando Santos acaba de dar a maior alegria ao país futebolístico, com a conquista do inédito título europeu. Sim, Portugal é campeão europeu. E sem derrotas. E com o 1-0 à anfitriã França na final. E sem o capitão Ronaldo desde os 25 minutos. E com um golo do patinho feio Éder, saído do banco de suplentes.

No campo meramente desportivo, é o mestre dos mestres. Pela diferença de assumir o título em Setembro de 2014, durante a apresentação oficial como substituto de Paulo Bento. Pela coragem de se achar no caminho da final, a seguir ao 0-0 com a Áustria, na segunda jornada da fase de grupos. E falta mais este pormenor delicioso: dos onze jogadores da final, seis estreiam-se na selecção por Santos. Seis. É mais de metade. Mérito maiúsculo para quem só entra nos quadros da federação em Setembro2014. Ou seja, há pouco mais de ano e meio. Tempo mais que suficiente para formar uma nova selecção. Cédric, João Mário, José Fonte, Raphaël, Adrien e Renato, eis os seis mosqueteiros lançados de Santos. O restante onze inclui três jogadores da era Scolari (Ronaldo, Nani e Pepe) e dois da era Paulo Bento (Rui Patrício e William). É muito, muuuuuuito jogo. É Fernando Santos no seu melhor.