Os Globos de Ouro, tal como os Óscares ou qualquer cerimónia de entrega de prémios da indústria do cinema ou da televisão, carrega sempre um paradoxo curioso: enquanto celebra o tempo que eterniza, lembra-nos, terrivelmente, quão depressa o tempo passa. E assim, ano após ano, se acentua a distância entre a imagem cristalizada das personagens no ecrã e o desfile dos homens e mulheres que lhes deram corpo.

Com mais rugas, mais cabelos brancos e mais, muito mais botox. Em casa, nós, que também não vamos para novos, olhamos para tudo com muito menos deslumbre e muito mais cinismo do que antigamente. Sobretudo porque, antigamente, nada batia o prazer das noitadas épicas de Óscares ou Globos de Ouro; agora, só pensamos que o dia seguinte é segunda-feira e que vamos passar a semana toda a lutar contra as horas de sono perdidas.

Cedo percebemos, portanto, que a 74ª edição dos prémios da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood seria para nós, acima de tudo, isto: uma noite para perceber quem anda a saber envelhecer. Nós incluídos.

À meia-noite, começou o duelo: as estrelas a desfilarem os seus smokings e vestidos na passadeira vermelha e nós de pijama no sofá, não necessariamente a pensar que falhámos na vida. Nesta primeira fase, como se sabe, é suposto dizer-se o que se tem vestido, de quem são as jóias, quem fez os cabelos, mas não seria muito mais interessante se nos contassem quem são os seus psiquiatras? O que é que andam a tomar, quem foi que lhes fez o nariz, nomes de solários, clínicas, agradecimentos ao pessoal da reabilitação que os deixou vir à festa, por aí afora? Tornaria tudo mais humano. É que, do ponto de vista da moda, não era preciso propriamente um especialista para perceber as tendências: grandes decotes para elas e grandes barbas para eles. Uma coisa quase bíblica. Vestidos abrindo-se em dois como o Mar Vermelho e barbas de Moisés para avançar rumo à Terra Prometida.

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Um a um, iam passando Matt Damon grisalho, Nicole Kidman com uma máscara de Nicole Kidman, um boneco de borracha com a voz de Sylvester Stallone, John Travolta empalhado, Annette Bening e Warren Beatty meio surdos, mas com óptimo aspecto, Tom Hiddleston a tentar falar de John Le Carré a uma apresentadora que parecia perguntar-se se seria alguma marca de perfume. De resto e como sempre, a palavra mais usada era “so” – “tão”. Ou melhor: “sooo”. Toda a gente estava “sooo excited”, “sooo beautiful”, “sooo amazing”, “having sooo much fun”. E uma pessoa a pensar cá com os botões do pijama que amanhã seria sooo segunda-feira.

À uma em ponto, estava tudo sentadinho na sala do Hotel Beverly Hilton, naquele aconchego mal arrumado dos Globos de Ouro que lhes dá, ao mesmo tempo, um toque mais verdadeiro do que os Óscares. Jimmy Fallon subiu ao palco e fez o que cada vez mais cabe aos apresentadores deste tipo de cerimónia: um número de abertura, para depois desaparecer sem deixar rasto no desfile de convidados e vencedores em contra-relógio.

A primeira piada foi certeira: “Bem-vindos a um dos poucos sítios em que a América ainda respeita o voto popular.” Seguiram-se mais duas com o mesmo acerto e o mesmo alvo, mas a sala, desconfortável, ainda reagia muito pouco. Só lá bem mais tarde, Hugh Laurie seria suficientemente contundente para que a constelação de estrelas fosse forçada a mostrar de que lado estava. Era agradável e, ao mesmo tempo, estranho, disse o “Dr. House”, receber aquele prémio de melhor actor secundário por “The Night Manager” no último ano dos Globos de Ouro. Porque a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood tinha duas coisas que não agradavam nada ao novo Presidente dos Estados Unidos: imprensa e estrangeiros.

Estava feita a declaração de guerra que Meryl Streep, adiante, haveria de assinar quando fosse receber o prémio carreira. Naquele que seria, de longe, o trecho mais tocante da noite, Viola Davis introduziu a homenagem com um discurso que parecia ter muito de pessoal e pouco de circunstância. Duas frases, entre muitas ditas olhando sempre Streep nos olhos: “Recorda-nos o papel do artista: fazer-nos sentir menos sós.” E outra, nesta noite em que falávamos de saber ou não saber envelhecer: “Faz-me sentir que o meu corpo, a minha cara, a minha idade, chegam.”

Depois, Streep, 67 anos, circunstancialmente quase sem voz, subiu ao palco não para falar dela ou sequer de cinema, mas olhar em volta e lembrar as origens de muitos dos artistas na sala: americanos, italianos, canadianos, irlandeses, israelitas, africanos, indianos, de toda a parte – e dizer que, sem eles, a América seria futebol e MMA. Pediu que se unissem em defesa da liberdade de imprensa e terminou, de lágrimas nos olhos, citando “a amiga Princesa Leia”: “Peguem nos vossos corações partidos e transformem-nos em arte”. A sala aplaudia de pé e, lá atrás, Fallon talvez pensasse no efeito que não teriam tido as mesmas piadas da abertura disparadas agora.

A noite que consagrou o musical “La La Land” como o recordista dos Globos de Ouro – sete vitórias em sete nomeações, para um filme de um jovem de 31 anos chamado Damien Chazelle – seria também, para eventual desagrado de muito simpatizante de Trump, noite de abundante black power. “Black-ish”, “Atlanta”, “The People vs. O. J Simpson: American Crime Story”, todas elas séries maioritariamente interpretadas por negros, dominaram os prémios para a televisão. “Fences” e “Moonlight”, longas-metragens realizadas respectivamente por Denzel Washington e Barry Jenkins, dois directores negros, levaram um globo cada; a britânica “The Crown” venceu em duas categorias e Isabelle Huppert protagonizou a primeira verdadeira surpresa da noite, quando já só faltavam dois minutos para as quatro da manhã, ao ganhar o globo para melhor actriz com, lembrou, um filme francês realizado por um holandês.

Afinal, ou Hollywood continuava multirracial e humanista ou éramos nós que, no fim de contas, ainda não tínhamos envelhecido e azedado tanto quanto temido. Dali a pouco, continuaria a ser segunda-feira, mas Travolta já quase parecia ter expressão. Íamos jurar que as maças do rosto de Nicole Kidman tinham mexido. Stallone – mas pode ter sido impressão nossa – desmontou-se num sorriso.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).