Não era para ter sido no Mosteiro dos Jerónimos. O primeiro local pensado para o velório de Mário Soares era a Assembleia da República, bem ao lado de São Bento, bem à frente da Fundação Mário Soares, símbolos de grande parte da sua vida. Depressa se percebeu que o palácio do Parlamento era pequeno demais para um velório de tão grande importância e a escolha recaiu sobre o Mosteiro dos Jerónimos, ao lado do Palácio de Belém, outro grande marco da sua vida.

Qualquer lugar de Lisboa, na verdade, seria incontornável. Por isso, o cortejo fúnebre demorou duas horas a percorrer as ruas da capital, talvez com menos população espalhada pelas avenidas do que seria de prever (na terça-feira demorará outras tantas a percorrer outras artérias igualmente importantes). O ponto de partida será o Mosteiro dos Jerónimos, onde o corpo do ex-Chefe de Estado está em câmara ardente desde as 13h desta segunda-feira, a receber homenagens e despedidas de todos os que as queiram prestar.

Já antes ali tinha sido velado Francisco Sá Carneiro. Foi ali que, a 12 de junho de 1985, Mário Soares, então primeiro-ministro, assinou uma parte da história de Portugal: o tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). Foi por um triz, segundo chegou a relatar o próprio na biografia Uma Vida, de Joaquim Vieira. “Tinha a convicção de que, se me tivesse demitido antes, o tratado, porventura, não teria sido assinado. Por isso fiquei até ao fim.”

A luta de Soares pela liberdade e depois pelos ideais europeus foi mesmo até ao fim, e a homenagem àquele que foi o primeiro Presidente da República eleito democraticamente a desaparecer prestou-se um pouco por toda a cidade. Ao velório acorreram amigos, desconhecidos, cidadãos chorosos, orgulhosos, mas também antigos adversários, porque em democracia não há inimigos.

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Duas horas a percorrer Lisboa, entre lágrimas, silêncios e aplausos

“Soares é fixe”. O slogan ouvia-se volta e meia ao passar do cortejo fúnebre, assim como se escreveu em algumas das cartas e notas que populares deixaram junto à porta da casa onde viveu, junto ao Campo Grande. Foi aí que começou o trajeto, pelas 11h, com a família e os amigos a reunirem-se às portas de casa, e às portas do Colégio Moderno, propriedade da família Soares, que foi também uma segunda casa.

Os alunos, professores e funcionários daquele colégio, que tiveram um dia (mais ou menos) normal de aulas, dispuseram-se à porta, junto à estrada, para verem a passagem do carro que transportava. Houve aplausos, bandeiras, de Portugal e do PS, e até um ciclista que partilhava com Soares a filiação na Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta e que não quis deixar de percorrer todo o caminho até aos Jerónimos em homenagem ao antigo Presidente.

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Correu tudo dentro dos timings planeados. Pouco depois das 11h o cortejo fúnebre deixou o Campo Grande e percorreu algumas das principais avenidas da cidade até chegar à Praça do Município, onde fez uma paragem mais demorada e mais emotiva. Centenas de portugueses esperavam a chegada do cortejo e receberam-no em aplausos demorados. Depois veio o silêncio, na altura em que a urna foi retirada do carro funerário para ser transportada para o armão militar, uma espécie de charrete, que, juntamente com 84 cavalos da GNR, transportou a urna durante o resto do percurso até aos Jerónimos.

Foi o momento mais emotivo do trajeto, aquele em que os netos de Mário Soares entregaram as insígnias e condecorações que recebeu em vida para irem juntamente com o corpo até ao local do velório. Com João e Isabel Soares, os filhos, na primeira fila — ladeados de todos os membros do executivo camarário e funcionários da câmara –, foi o presidente da autarquia, Fernando Medina, quem se aproximou da urna para deixar um cravo vermelho. Flor que contrastou com as rosas amarelas que a família segurava nas mãos, as mesmas que seguraram no funeral da mulher, Maria Barroso, e que eram as suas preferidas.

Os aplausos foram prolongados e a charrete seguiu viagem, junto ao Tejo, pela avenida em direção a Belém.

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Os amigos na hora da despedida. E o “amor fraternal para sempre no coração”

Nos Jerónimos, à espera do cortejo, estava o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, assim como o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e a ministra da Presidência, Maria Manuel Leitão Marques, que, à falta de António Costa (que está em visita oficial na Índia) e de Augusto Santos Silva (que só chegou a Lisboa à tarde), era quem representava o Executivo. Mais um momento de silêncio, antes das palmas.

O dia estava “inteiro e limpo”, como diria a sua amiga Sophia de Mello Breyner, e foram milhares as pessoas que, ao longo da tarde, se deslocaram aos Jerónimos para o último adeus a Soares. As filas estendiam-se rua fora e era preciso pelo menos meia hora para conseguirem chegar finalmente à Sala dos Azulejos. Os ramos de flores que levavam consigo eram entregues aos elementos da agência funerária, que depois os colocariam nos claustros, à medida se aproximavam da urna para a despedida.

Entre cidadãos anónimos e desconhecidos, foram várias as personalidades que quiseram marcar presença no velório. António Costa faltou, por motivos de força maior, e Augusto Santos Silva defendeu que a decisão que o primeiro-ministro tomou de não interromper a visita de Estado foi uma “bela homenagem a Mário Soares”, assim como agradeceu a Soares ter “ganho a batalha” da democracia.

O socialista Edmundo Pedro, 98 anos, amigo de longa data, foi um dos que não quis faltar e recordar os anos ao lado do ex-Presidente. “Sempre estivemos do mesmo lado” na fundação da democracia, disse, sem mencionar outras desavenças. Durante o PREC, lembrou, estiveram “sempre ao lado um do outro. E ele uma vez até disse que sem mim não tínhamos vencido o PREC, o que é um exagero”.

Já o ex-primeiro-ministro José Sócrates preferiu não entrar pela relação de amizade nem pela vida privada. Lembrava-se bem da última conversa que teve com Soares, que várias vezes o foi visitar ao estabelecimento prisional de Évora. A última vez foi quando, já em liberdade, foi entregar um exemplar do seu livro ao antigo Presidente. Mas sobre o que conversaram, isso fica entre eles. Sócrates preferiu destacar a sua vida política “inspiradora” e homenagear um político “absolutamente extraordinário”. “Não gosto de falar dos meus sentimentos, mas tenho um carinho, e posso mesmo dizer, um amor fraternal que ficará para sempre no meu coração”, disse.

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António José Seguro era o único ex-líder do PS que ainda não tinha dito nada sobre a morte do fundador do partido, foi até aos Jerónimos prestar homenagem. Os dois foram bastante próximos, tendo estado juntos no Parlamento Europeu, mas Soares acabaria por tomar partido por António Costa nas primárias de 2014. A relação de Seguro e Soares, por essa altura já tinha conhecido melhores dias, mas isso são águas passadas. “Liberdade, democracia e Europa estarão sempre associadas ao nome de Mário Soares”, disse, desvalorizando as discordâncias.

“Tivemos as nossas divergências por uma razão fundamental: ambos pensamos pelas nossas cabeças. Mas tudo isso é pequenino, perante o legado que ele deixou”, disse. Para Seguro, Soares deixa quatro marcas da história do país: a fundação do PS; a resistência à ditadura e o apoio aos presos políticos e o exílio; a opção democrática da revolução; a opção europeia.

Não faltaram amigos e apoiantes, outros não tão apoiantes quanto isso, mas admiradores ainda assim. Pedro Passos Coelho foi o único líder partidário que optou por entrar no Mosteiro pela porta destinada aos populares e não às altas individualidades. Esperou 25 minutos para entrar e “não foi apenas como presidente do PSD e ex-governante, mas também como cidadão que quis prestar-lhe [a Mário Soares] essa homenagem enquanto o seu corpo está em câmara ardente”, disse. Depois, desdobrou-se em elogios: “Neste momento de tristeza vão-se relevar as grandezas — e o Dr. Mário Soares foi grande — que estão associadas ao seu percurso de vida, mas ficam também os sentimentos daqueles que privaram mais com ele e em particular a família”.

…E a última visita dos antigos adversários

“Queria transformar os velhos inimigos em leais adversários”. Foi José Sócrates quem o disse, recordando um verso que defendeu resumir bem a postura de Mário Soares na vida e na democracia. A verdade é que na despedida não faltaram os adversários de outrora. Só Diogo Freitas do Amaral faltou, por motivos de saúde. Ramalho Eanes esteve presente várias horas e deixou claro que, apesar dos confrontos, “nas grandes questões” esteve sempre “muito próximo” de Soares.

O antigo Presidente da República, António Ramalho Eanes, explicou que foi ao Mosteiro dos Jerónimos prestar “uma homenagem a um homem que, na luta política, se empenhou e que é um coautor relevante dos mais vastos acontecimentos políticos do Portugal contemporâneo”. Entre esses momentos, Ramalho Eanes inclui a “transição, a institucionalização, a consolidação da democracia, uma democracia aberta, constitucional, pluralista”, bem como a “entrada na Comunidade Económica Europeia, o momento em que optámos por uma via de futuro, que trouxe ao país ostenta e usufrui”.

Com Manuel Alegre, com quem Soares se desentendeu e que defrontou nas urnas, Mário Soares reconciliou-se ainda em vida. O poeta não faltou às cerimónias. As divergências com algumas personalidades e instituições podem ser profundas, mas nesta altura são postas para trás das costas. Jerónimo de Sousa ainda não se tinha pronunciado sobre a morte do antigo Presidente mas fê-lo esta tarde quando visitou o corpo em câmara ardente. Disse que a história muitas vezes é escrita pelos vencedores, não se inventa nem se apaga, mas cada um tem a sua visão. E a visão do PCP sobre a história pode não ser a mesma do que a de Soares. Em todo o caso, Jerónimo não deixou de recordar Mário Soares como “um combatente contra a ditadura fascista” e um defensor dos presos políticos “num tempo em que era difícil fazê-lo”.

De resto, “a história não se inventa, mas existirão sempre interpretações diferentes”. Porque “muitas vezes quem escreve a história são os vencedores, mas a história não se apaga. E nós temos a nossa visão”, afirmou o secretário-geral comunista.

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Amanhã é outro dia

Esta terça, durante a manhã, o corpo de Mário Soares continua em câmara ardente nos Jerónimos, mas as portas fecham-se aos populares por volta das 11 horas. Para as 13 horas está marcada a sessão de homenagem que vai ter a participação musical do coro e da orquestra do Teatro Nacional de São Carlos.

A cerimónia abre com o hino nacional, seguido de um registo áudio da voz de Mário Soares. Depois disso, discursa o seu filho, João e a filha Isabel. Pelo meio vai ouvir-se também uma gravação da voz de Maria Barroso, mulher de Mário Soares que morreu em 2015. Segue-se um momento musical, com Mozart a soar nos claustros dos Jerónimos onde vai decorrer a cerimónia.

As intervenções que vão ouvir-se depois deste momento dedicado à família serão as do primeiro-ministro António Costa, que gravou umas palavras em vídeo por estar ausente em visita de Estado à Índia, do Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Estas intervenções vão ser intercaladas por momentos musicais, primeiro tocará Edward Elgar e Gabriel Fauré.

21 tiros da Marinha, no Tejo, na despedida final

A cerimónia nos Jerónimos está previsto demorar cerca de uma hora e meia, com o cortejo fúnebre a organizar-se de novo no final rumo ao cemitério dos Prazeres. Depois de um trajeto com pontos de paragem junto do Palácio de Belém, a Assembleia da República e a sede do PS, o carro que vai transportar o corpo do antigo Presidente da República desloca-se até aos Prazeres onde será recebido, na praça frente ao cemitério, com honras militares. A urna será depois transportada para a capela, com alas de cortesia desarmadas das Forças Armadas (sem estandarte em sem música), e é lá que vai acontecer o último momento evocativo, ouvindo-se novamente a voz de Mário Soares.

A bandeira de Portugal que cobre a urna será entregue pelas Forças Armadas ao Presidente que, por sua vez, a entregará à família, bem como as insígnias. No momento em que o corpo de Soares for transportado para o jazigo da família, vão soar 21 tiros de artilharia da Marinha, a partir do rio Tejo. Esse será o momento do adeus.