A menos de duas semanas de ceder o cargo de Presidente dos EUA a Donald Trump, Barack Obama fez uma defesa do seu legado depois de oito anos na Casa Branca e colocou sobre os ombros do povo norte-americano o fardo de prosseguirem durante os anos que se seguem com o que entende serem as suas maiores conquistas.

“Nós continuamos a ser a nação mais rica, mais poderosa e mais respeitada no mundo. A nossa juventude, a nossa diversidade e a nossa abertura, a nossa capacidade ilimitada de lidarmos com o risco e com a reinvenção diz-nos que o futuro pode ser nosso”, disse. “Mas esse potencial só pode ser cumprido se a nossa democracia funcionar e se a nossa política refletir a decência do nosso povo.”

Foi esse o tom geral daqueles 45 minutos — consideravelmente acima dos 13 minutos de George W. Bush em 2009 ou de Bill Clinton, que não passou dos 7 minutos em 2001 — onde Barack Obama chegou a ser interrompido por apoiantes que gritavam por um novo mandato do ainda Presidente dos EUA. “Mais quatro anos! Mais quatro anos!”, ouviu-se. “Não posso fazer isso”, devolveu-lhes.

O discurso teve lugar no McCormick Place, um centro de congressos em Chicago, a cidade onde Barack Obama deu os primeiros passos na política. Ao optar por aquele local, onde já tinha festejado a sua reeleição, em 2012, o Presidente dos EUA quebrou a tradição de aquele discurso ser feito na Casa Branca.

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“Foi aqui que eu aprendi que a mudança só acontece quando as pessoas comuns se envolvem, se motivam e juntam para exigi-la”, disse. “Depois de oito anos como Presidente, eu ainda acredito nisso.”

Obama pede aos americanos para saírem das suas “bolhas”

Sobre o Presidente eleito Donald Trump, que vai tomar posse na manhã de 20 de janeiro em Washington, Barack Obama falou apenas uma vez. Como já o tinha feito, disse estar “comprometido” com a “passagem pacífica do poder de um Presidente eleito de forma livre para o seguinte”. A explicação de Barack Obama, feita em jeito de pro forma, foi interrompida pelos apupos do público a Donald Trump.

E embora não tenha voltado a referir o nome do Presidente eleito, Barack Obama tocou em muitos dos assuntos e das ideias que ainda sobram das eleições presidenciais de 8 de novembro do ano passado — uma das mais agressivas e fraturantes de que há memória, que resultou na vitória de Donald Trump apesar de Hillary Clinton ter vencido o voto popular por uma margem de quase 3 milhões.

Numa parte do seu discurso, Barack Obama falou das tensões raciais no país. Embora tenha dito que “a convivência racial está melhor do que há dez, vinte ou trinta anos”, o primeiro Presidente afro-americano dos EUA fez uma ressalva: “Mas ainda não estamos onde precisamos de estar”.

Esse sítio, explica, fica a meio caminho entre aquilo que são as perceções de cada um dos extremos. Para os negros e outras minorias, explicou, isso terá de passar “por estabelecer uma ligação entre as suas lutas por justiça e os desafios que muita gente neste país atravessa, desde o refugiado, o imigrante, o camponês pobre, o americano transgénero e também o homem branco de meia idade que por fora pode parecer que tem todas as vantagens mas que tem visto o seu mundo a ser abalroado por mudanças económicas, culturais e tecnológicas”.

US first lady Michelle Obama (L) holds her daughter Malia as US President Barack Obama speaks during his farewell address in Chicago, Illinois on January 10, 2017. Barack Obama closes the book on his presidency, with a farewell speech in Chicago that will try to lift supporters shaken by Donald Trump's shock election. / AFP / Nicholas Kamm (Photo credit should read NICHOLAS KAMM/AFP/Getty Images)

Barack Obama fez o último discurso em Chicago, onde vivia com a família antes de ter tomado posse em 2009. A sua mulher, Michelle, e filha mais velha, Malia, estiveram presentes (NICHOLAS KAMM/AFP/Getty Images)

Por outro lado, esse ponto neutro só será atingido se houver um esforço por parte dos “americanos brancos”. “Isso significa reconhecer que os efeitos da escravatura e de Jim Crow [as leis segregacionistas, abolidas com a Lei dos Direitos Civis de 1964] não desapareceram nos anos 60”, disse. E acrecentou: “[Significa reconhecer] que quando os grupos minoritários expressam desagrado, eles não estão só a fazer racismo ao contrário ou a praticar o politicamente correto. Quando eles protestam pacificamente, não estão a pedir um tratamento especial, mas o tratamento igualitário que os nossos fundadores prometeram”.

Barack Obama voltou a insistir numa mensagem a favor de pontes entre os vários setores da sociedade norte-americana ao longo do seu discurso, referindo que alguns vivem em “bolhas”. “Para muitos de nós, tornou-se mais fácil ficarmos nas nossas bolhas, tanto nos nossos bairros, nas universidades, no locais de culto ou nos feeds das redes sociais”, disse, acrescentando ainda a “bolha” dos media, onde há um “canal para cada gosto”.

“Se estão cansados de discutir com desconhecidos na internet, então vão falar com um na vida real”, apelou Barack Obama.

“Cada vez mais, sentimo-nos tão seguros nas nossas bolhas que aceitamos apenas informação, seja ela verdadeira ou não, que encaixa nas nossas opiniões, em vez de basearmos as nossas opiniões nas provas que andam por aí”, criticou, numa alusão aos media e à propagação de notícias falsas, que alguns democratas têm usado para justificar a derrota eleitoral de Hillary Clinton.

Além disso, novamente entre democratas mas também entre a comunidade de intelligence norte-americana, a possibilidade de a Rússia ter tentado interferir nas eleições de 8 de novembro do ano passado com o objetivo de conseguir a eleição de Donald Trump tem sido amplamente discutida. Barack Obama referiu esse “desafio”, dizendo que ele é colocado por “autocratas em capitais estrangeiras que olham para os mercados livres, para as democracias abertas e para a sociedade civil como uma ameaça para o poder”.

Apesar de ter referido também o perigo dos “fanáticos violentos que dizem falar pelo Islão”, o 44.º Presidente dos EUA disse que o o “autocratas em capitais estrangeiras” representam riscos “muito mais abrangentes” do que um carro-bomba ou um míssil. “Representa o medo da mudança, o medo das pessoas que parecem ser diferentes ou que rezam de outra maneira, ou um desprezo pelo Estado de direito que chama os nossos líderes à responsabilidade.”

US President Barack Obama cries as he speaks during his farewell address in Chicago, Illinois on January 10, 2017. Barack Obama closes the book on his presidency, with a farewell speech in Chicago that will try to lift supporters shaken by Donald Trump's shock election. / AFP / Joshua LOTT (Photo credit should read JOSHUA LOTT/AFP/Getty Images)

Barack Obama teve que limpar as lágrimas

“Se eu vos tivesse dito isto há oito anos…”

Agora que os seus oito anos no poder terminam, Barack Obama também concentrou grande parte da sua intervenção da madrugada desta quarta-feira para defender o que conseguiu fazer nos seus dois mandatos.

Os pergaminhos exibidos por Barack Obama vão desde a economia, o reatar de relações diplomáticas com Cuba, o acordo nuclear com o Irão, a captura de Bin Laden, a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a criação de um sistema de saúde que levou a que cerca de 20 milhões de pessoas deixassem de viver sem seguro.

“Se eu vos tivesse dito isto há oito anos (…), vocês teriam dito que as nossas esperanças estavam um bocadinho altas demais”, ironizou.

Ainda assim, a defesa que Barack Obama fez não é partilhada por muitos e muito menos é à prova de bala. Como aqui escrevemos, a recuperação económica e a criação de emprego são dois factos inegáveis, mas também o são os rendimentos mais baixos em relação aos valores pré-crash de 2008 ou o decréscimo do número daqueles que trabalham ou procuram emprego. Além disso, o objetivo estabelecido por Barack Obama de se aproximar da Rússia falhou redondamente, tal como não resultou uma nova via de relacionamento com o Médio Oriente, onde o islamismo radical ganhou um novo fôlego apesar da morte de Bin Laden. E a reforma da saúde, levada a cabo pelo programa que ficou popularmente conhecido por Obamacare, está longe de ser infalível e favorecido pela maioria dos americanos.

No final de contas, Barack Obama termina com uma taxa de aprovação fixada pela Gallup nos 56% — o que, olhando apenas para os dois últimos antecessores, o deixa abaixo dos 66% finais de Bill Clinton mas claramente acima dos 29% com que George W. Bush abandonou a Casa Branca.

Para fechar o discurso, o Presidente dos EUA que está prestes a deixar de sê-lo voltou ao início da sua campanha vitoriosa de 2008, recorrendo ao seu slogan de então. “Sim, nós podemos”, disse, para depois juntar a esse “Yes We Can” um “Yes We Did”, que é como quem diz “sim, nós conseguimos”, em jeito de missão cumprida. Mas logo a seguir voltou a acrescentar um “Yes We Can”. Parece repetição, mas não é. Agora, é dos próximos quatros anos de que Barack Obama fala.