“A Morte de Luís XIV”

É sempre encafuado no quarto de Luís XIV, à altura da sua almofada e à luz das velas, que o realizador catalão Albert Serra (“Honra de Cavalaria”) filma a agonia do monarca francês, que durou pouco mais de uma semana, em Agosto de 1715, até ele se finar a um de Setembro, de gangrena numa perna. Tinha 76 anos. Pesado, arrastado, pictórico, claustrofóbico, com Jean-Pierre Léaud personificando o rei numa interpretação toda ela assente nas inflexões da voz e nas expressões faciais, dada a condição da personagem, o filme, inicialmente concebido como uma “performance” de 15 dias a ter lugar no Centro Beaubourg, em Paris, vai beber nos escritos do marquês de Dangeau, que foi uma das testemunhas mais minuciosas da agonia do rei.

Isto embora Serra esteja mais interessado nos pormenores e na evolução da doença, e na contínua dança de cortesãos, amantes, familiares, médicos, eclesiásticos, lacaios e charlatães em redor de Luís XIV, verdadeiros satélites do grande Rei-Sol, do que no significado simbólico e político do seu desaparecimento. Sim, a morte chega ao rei como a qualquer um dos seus súbditos, mas tem uma dimensão especial e singular, maior que a simples extinção física, que escapa ao realizador, pouco interessado nos aspectos religiosos e de Estado do acontecimento, que o monarca privilegiou mesmo até ao fim. Não é por acaso que uma das frases que ele proferiu na altura foi: “Vou, mas o Estado ficará sempre”. É esta dimensão do poder e da História presente na morte da personagem que é subvalorizada em “A Morte de Luís XIV”.

“O Estado das Coisas”

Rodado em Portugal há 35 anos, “O Estado das Coisas”, de Wim Wenders, passa-se durante as filmagens, na Praia Grande, de uma fita de ficção científica de série B, “Os Sobreviventes”, o “remake” de um velho título de Roger Corman, “The Day the World Ended”. (Corman aparece brevemente no final, em Los Angeles). Sendo um filme que glosa um tema tipicamente wendersiano, a passagem do tempo sobre pessoas errantes ou, no caso, inactivas (o dinheiro e a película acabam e a equipa fica sem fazer nada num hotel à beira-mar), e que confronta, nas pessoas do realizador europeu (Patrick Bauchau) e do seu produtor americano (Allen Goorwitz), duas formas opostas de fazer cinema, sem e com alicerces de história, “O Estado das Coisas” transformou-se, pela acção inexorável do tempo, num filme de fantasmas. Lá estão, já desaparecidos, mas fixados para sempre no preto e branco rigoroso de mestre Henri Alekan (também ele morto entretanto) Sam Fuller e o seu charuto, Robert Kramer silencioso, Artur Semedo e a sua mão enluvada. E um Portugal a entrar nos anos 80 dos dinheiros europeus.

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Feito num intervalo das complicadíssimas filmagens de “Hammett” em Hollywood, “O Estado das Coisas” é ainda um desabafo mal oculto de Wenders sobre as relações conflituosas que teve com o seu produtor, Francis Ford Coppola. Mas embora finja ser um filme “sem paredes”, contemplativo e não-narrativo, ele ilustra as duas aproximações ao cinema defendidas pelas personagens do realizador alemão e do produtor americano. Na parte portuguesa de “O Estado das Coisas”, Wim Wenders faz um filme “europeu”, “independente”, vago. Na parte americana, rodada no coração da indústria, Wenders cultiva os valores da narração clássica, económica e tensa. Reposto em cópia digital restaurada, “O Estado das Coisas” abre um ciclo de filmes do cineasta em cópias novas.

“Homenzinhos”

No novo filme de Ira Sachs, Brian Jardine (Greg Kinnear) é um actor de segundo plano que vive com a mulher, Kathy (Jennifer Ehle), uma psicoterapeuta, e o filho adolescente, Jake (Theo Taplitz) em Manhattan. O pai de Brian morre e deixa-lhe, e à irmã Audrey (Talia Balsam), uma casa de dois andares em Brooklyn, para onde a família se muda. No primeiro andar do prédio há uma loja que o pai de Brian alugava, por uma ucharia, e por amizade, a uma costureira, Leonor Cavelli (a chilena Paulina Garcia, intérprete de Glória e da série “Narcos”), que tem um filho, Tony (Michael Barbieri), adolescente como Jake. Brian e a irmã acham que a renda de Leonor é muito baixa, e decidem triplicá-la. Leonor não pode pagar o aumento e invoca, sem sucesso, a amizade que a ligava ao pai de Brian e Audrey. A cordialidade que se esboçava entre os Jardine e ela vira azedume, está o caldo entornado entre senhorios e inquilina e os advogados entram em cena.

Entretanto, e apesar de terem temperamentos muito diferentes, o sensível e “artístico” Jake, que quer ser pintor, e o extrovertido e dinâmico Tony, que quer ser actor, ficaram amigos do peito e andam sempre juntos. Quando os pais desenterram o machado de guerra, em vez de ir cada um para seu lado, juntam forças e, em protesto, dão-lhes o tratamento do silêncio: quando eles lhes falam, ficam mudos e quedos. Assente num problema de habitação e de dinheiros causado pela situação económica, tal como a anterior realização de Ira Sachs, “O Amor é uma Coisa Estranha”, “Homenzinhos” foi escolhido pelo Observador como Filme da Semana, e pode ler a crítica aqui.