Daniel Faria, o poeta-monge, poeta-mito, morreu aos 28 anos. Não era uma estrela pop, nem morreu aos 27. Talvez assim muitos mais soubessem de cor os seus versos que constituem um dos lugares mais bem situados da poesia no final do século XX. Camões, génio renascentista, que poucos têm conseguido mostrar na sua imensa modernidade, e Miguel-Manso, uma das promessas da atual poesia portuguesa mas ainda só conhecido por um grupo restrito de leitores, são os poetas que o D. Maria II escolheu para o Estúdio Poético. Um projeto, que nas palavras do seu diretor, Tiago Rodrigues, quer “mostrar a novos públicos a força da linguagem poética escrita em português, através de espetáculos que atualizem simultaneamente a palavra e o teatro”.

Três poetas, três encenadores, três dias para falar menos de poesia e mais da forma como ela deseja ser a palavra justa para homens justos. Um tríptico feito de três peças diferentes onde a morte e a fé são as forças omnipresentes. O fio de Ariadne que, ao contrário do mito, não levará a nenhuma saída mas tão só a novos labirintos de sentido e de (i)razão. O primeiro espetáculo, “Daniel Faria”, é encenado pelo dramaturgo e poeta galego Pablo Fidalgo estreia-se esta quinta-feira e fica em cena até domingo, dia 22. Segue-se “A Força Humana”, de António Fonseca, a partir de Os Lusíadas, entre 26 e 29 e, por fim, um poema de Miguel-Manso dá corpo a “Rosto, Clareira e Desmaio” que estará em cena entre 9 e 12 de fevereiro.

Pablo Fidalgo e os traços da vida de Daniel Faria. Fotografia: Tiago Gandra

O encenador e poeta Pablo Fidalgo recolhe os pedaços da vida de Daniel Faria. (Fotografia: Tiago Gandra)

Em entrevista ao Observador, Tiago Rodrigues explica que este Estúdio Poético se quer “desafiante” para encenadores, espetadores e leitores, “mesmo aqueles habituados às tertúlias de poesia que têm decorrido em Lisboa e Porto”, uma vez que “cruzar a poesia com qualquer outra disciplina artística coloca problemas, inquietações, dificuldades que devem ser assumidas não como problemas mas como ponto de partida para a renovação da forma como os Teatros Nacionais devem exercer a sua missão de divulgar a literatura”. Para além deste projeto o D.Maria II tem ainda mensalmente uma tertúlia dedicada à poesia: Clube dos Poetas Vivos, coordenada pela atriz Teresa Coutinho.

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Daniel Faria: a poesia como silêncio e recolhimento

Antes de ser um monge, antes de ser um mito, Daniel Faria (1971-1999) era um poeta que colecionava pedras, pássaros de papel colorido, encenava teatro com crianças e jovens, convidava poetas homossexuais como Eugénio de Andrade para irem ler poesia ao mosteiro de Singeverga (Roriz, Santo Tirso), num gesto que para muitos ainda é hoje lembrado como “revolucionário”. Era um homem cultíssimo, fascinado pela forma como a palavra se representava nas múltiplas linguagens humanas: música, cinema, teatro, artes plásticas, literatura. Ou talvez, admite o encenador Pablo Fidalgo, fosse “apenas um pássaro, como aqueles de papel que ele guardava dentro de um frasco onde se podia ler: 24 pássaros contra todas as ausências”.

Daniell Faria, poeta, monge beneditino, morreu em 1999 aos 28 anos

Daniel Faria, poeta, monge beneditino, morreu em 1999 aos 28 anos. (Foto: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

“Daniel Faria” é assim uma peça em quatro atos, que se ergue sobre fragmentos da vida do poeta e não sobre a sua poesia. Não é pronunciado um só verso de Faria durante todo o espetáculo e, no entanto, a sua poesia torna-se absolutamente tangível, comovente, apenas através da evocação de pequenos gestos, a lentidão essencial à grande beleza, o seu silêncio de ser um dos que fazem parte do silêncio e não do ruído.”Daniel Faria procurava a palavra certa, não escrevia à toa, nada está ali por acaso. Tudo é um convite ao recolhimento e à palavra justa. A vida e poesia dele, embebidas de misticismo e sagrado,continuam a ser um mistério para mim. Por isso esta peça tinha sobretudo que ser sobre esse recolhimento, esse silêncio”, explica o encenador.

No chão há objetos delicados, o manto feito em patchwork para uma peça de teatro que encenou sobre o Natal. Cenários para bonecos feitos em cartão, papel celofane e arame destinados a outra peça, pássaros coloridos presos num fio. Nada grandiloquente, nada sofisticado ou pedagógico

Daniel escolheu ter uma vida apagada, mas a sua obra inteira é uma resposta à palavra de Deus, afirmou um companheiro do mosteiro de Singeverga. Não imaginas como brilhava quando atuava. Quando saia para a cena, transformava-se, disse ainda alguém. (texto da peça Daniel Faria)

Assim mesmo. Apenas traços de um longínquo que Pablo Fidalgo e o ator Tiago Gandra foram recolher em entrevistas com monges companheiros do poeta, amigos dos tempos de faculdade no Porto. Com as memórias de outros construiram o texto elíptico, que não cai no erro de deixar de ser poesia para ser uma “história”, nem cai no erro de querer explicar nada porque, diz a dada altura o encenador, como se falando com e sobre o poeta: “tu sabes que os leitores ideais são os que leem nos teus gestos e na tua roupa a tua dor inteira”.

Como um pássaro que uma noite se ergue para voar e erra o caminho, também Daniel Faria se ergueu da cama uma noite, caiu acidentalmente no mosteiro onde terminava o noviciado e acabou por morrer. Tinha 28 anos, não deixou nenhum registo sonoro, fílmico, e apenas umas escassas fotografias. Porém, deixou uma voz poética ubíqua na poesia portuguesa. Na sua curta vida publicou os livros: Uma Cidade com Muralha (1991), Oxálida (1992), A Casa dos Ceifeiros (1993), Explicação das Árvores e de Outros Animais (1998) e Homens Que São Como Lugares Mal Situados (1998). Postumamente saíram ainda Legenda para uma casa habitada e Dos Líquidos ( 2000).

Camões e os náufragos da Europa de hoje

A força humana do ator e encenador António Fonseca mostram-se ao mundo de forma avassaladora quando este decorou integralmente o poema épico português, Os Lusíadas (oito mil, oitocentos e dezasseis versos). Uma performance em forma de “falação” da viagem iniciática do poeta Luís de Camões e do povo português que o travestia. Esse espetáculo metamorfoseou-se agora numa revisitação do texto camoniano para pensar a Europa atual. “A Força Humana”, segundo momento do Estúdio Poético junta em palco os atores António Fonseca e José Neves já não para retratar a viagem dos que partem, mas sim a vida dos que chegam a uma terra desconhecida e hostil. Como explicou Tiago Rodrigues, “Camões serve aqui para falar das migrações, uma realidade Europeia e global que recorre ao mais moderno dos poetas renascentistas para ser refletida”.

Os atores António Fonseca e João Neves na peça A Força Humana. Imagem Força humana ©João Tuna

Os atores António Fonseca e João Neves partem da poesia de “Os Lusíadas” para pensar a Europa hoje (Fotografia: João Tuna)

Se Os Lusíadas são um poema de um povo que naufraga entre a História e o mito, o fantástico e o onírico, a fábula e o facto, então eles mostram que talvez a poesia seja ainda e sempre a melhor forma de falar do que cada tempo vive mas não sabe dizer.

Miguel-Manso: Rosto, Clareira e Desmaio

O poeta Miguel-Manso é o único poeta vivo desta trilogia. Nasceu em 1979 mas já tem uma dezena livros publicados entre edições de autor, pequenas e grandes editoras. Vive entre a adesão eufórica de uns e a indiferença de muitos. O próprio faz por se manter relativamente discreto. Este é pois um momento possível para abrir a porta a uma poesia que se alimenta do porvir e de um autor que escreve sabiamente: “Que o texto seja não o texto consumado mas o caminho para a consumação do texto”.

A encenadora Susana Vidal traz para o palco um poema que nasce de um diálogo entre Manso e o livro Máscara, Mato e Morte: Textos para Uma Etnografia de São Tomé, do antropólogo Paulo Valverde, tal como Daniel Faria, falecido em 1999, vítima de malária. Valverde era um dos mais emblemáticos antropólogos portugueses e este ensaio está impregnado da linguagem poética que caracterizava sua obra.

Este livro, que seria o último de Valverde, nasceu das investigações que o cientista desenvolveu na ilha de São Tomé, entre 1995 e 1999, sobre o tchiloli, um ritual que teve origem nas representações teatrais que que os europeus lá fizeram da tragédia do Imperador Carlos Magno que, face ao homicídio do filho, o Príncipe Dom Carloto, deve optar entre as razões do sangue e as razões do Estado. Além das atuações do tchiloli, o ensaio vai ainda aos quintais dos mestres curandeiros e às cerimónias curativas que neles se realizam, os djambis. Este livro que se tornou um marco para a Antropologia portuguesa é resgatado pelo poeta Miguel- Manso que sobre ele construiu o poema que agora se faz de novo teatro.

Rosto, Clareira e Desmaio junta assim dois textos poéticos, cada um dele refletindo à sua maneira sobre as máscaras, o visível e o invisível, o sagrado e o profano.

A poesia de Miguel-manso chega aos palcos pela mão da encenadora e atriz Susana Vidal

A poesia de Miguel-Manso chega aos palcos pela mão da encenadora e atriz Susana Vidal (D.R)

Do elenco deste trabalho fazem ainda parte os atores Bruno Alexandre, Carla Ribeiro, Cláudio da Silva e a própria Susana Vidal.

Tiago Rodrigues, por estes dias no Canadá a acompanhar a digressão de uma peça do Nacional, explicou ainda ao Observador que, apesar de estarem apenas três dias em cena, estes espetáculos vão fazer carreira por outras cidades do país: “A opção de fazer carreiras curtas não é uma política para todas as peças dos Nacional, mas a tentativa de se adequar ao público expectável para cada uma delas”.

Mais informação no site oficial do Teatro Nacional D. Maria II