O argentino Mariano Pensotti é um encenador à moda antiga, mas gosta de se contrariar. Faz peças baseadas em textos longos e literários, ao mesmo tempo que procura romper com a narrativa clássica e a estrutura antiga das peças de teatro. Trabalha no “limite do teatral” – a expressão é dele.

Provavelmente nunca tinha ido tão longe como em “Arde Brilhante nos Bosques da Noite”, espetáculo que apresenta este fim-de-semana no Teatro Maria Matos, em Lisboa (sábado às 21h30, domingo às 18h30).

“É uma peça bastante diferente das outras que fiz até hoje”, reconheceu Mariano Pensotti, em conversa telefónica com o Observador. “As outras obras estavam mais centradas em personagens masculinas e neste caso é precisamente o aposto. É também uma peça muito diferente em termos formais. Honestamente, é a primeira vez que incluo um filme e marionetas dentro de uma obra. Mas sempre me interessou pensar o teatro como lugar de cruzamento de disciplinas, como lugar para o qual convergem a literatura, o cinema, o audiovisual, o cinema e a música.”

“Arde Brilhante nos Bosques da Noite” teve estreia absoluta a 12 de janeiro no teatro berlinense Hebbel am Ufer (HAU), onde conheceu quatro apresentações. Surge agora no Maria Matos, no âmbito da iniciativa Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura 2017. É a primeira peça de teatro deste ciclo de programação.

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Foi coproduzida por aquelas duas salas e ainda pelo festival de criação contemporânea Kunsten Festival des Arts, de Bruxelas. Vai circular por diversas cidades europeias através da rede House on Fire, que é financiada pela Comissão Europeia e distribuiu produções teatrais de cariz documental ou politicamente engajadas.

“A estreia em Berlim foi uma situação pouco habitual”, disse o encenador, de 43 anos, a partir da capital alemã. “Geralmente, as minhas obras estreiam-se em Buenos Aires e depois eventualmente entram em digressão, mas aqui tratou-se de uma encomenda.”

Inspirada na Revolução Russa, cujo centenário se assinala este ano, a peça procura “ressonâncias dessa revolução no mundo contemporâneo”, segundo Pensotti. Ao mesmo tempo, reabilita a figura da feminista e marxista Alexandra Kollontai (1872-1952), dirigente da Revolução de Outubro de 1917 – pelo menos até à ascensão de Estaline.

“Este dois temas foram uma coincidência”, apontou Pensotti. “A princípio, estava interessado apenas em trabalhar sobre o centenário da Revolução, mas ao conversar com a diretora do teatro do Berlim ela propôs-me que acrescentasse Kollontai e o feminismo.”

Ao longo de uma hora e 40 minutos, o público assiste a três peças dentro da peça, cada qual num formato próprio e com uma protagonista distinta.

  • A primeira história é sobre uma professora universitária de Buenos Aires que dá aulas sobre Revolução Russa e está em conflito consigo mesma por achar que não vive de acordo com o espírito revolucionário. Surgem marionetas.
  • A segunda história é sobre uma jovem europeia de classe média que um dia se envolveu com os guerrilheiros colombianos das FARC e que ao regressar a casa, depois do processo de paz, percebe como tudo mudou à sua volta. Peça de teatro clássica.
  • Por fim, a terceira história é a de uma jornalista de política que trabalha em Buenos Aires e ao ser promovida no emprego decide celebrar com as amigas e embarcar numa viagem de turismo sexual ao norte da Argentina, acabando por encontrar descendentes de soviéticos revolucionários que hoje trabalham como strippers. Projeção de um filme.

“É a primeira vez que o feminismo aparece no meu trabalho”, pormenorizou Mariano Pensotti. “Estas protagonistas femininas não são recriações de Alexandra Kollontai, mas muitas das ideias dela estão presentes nos conflitos das personagens. O que me interessou foi encontrar o que de relevante sobreviveu da Revolução Russa e das ideias de Kollontai. Ela foi das primeiras pensadoras a unir a ideia de luta de classes, ou de opressão de classe, à ideia de opressão de género, o que é muito atual. Investiguei em relação à forma como a sociedade capitalista modifica, transforma ou oprime o corpo das mulheres. Neste sentido, é também uma obra sobre as políticas do corpo.”

As histórias das três personagens femininas são atravessadas por acontecimentos ligados à Revolução de 1917, sem que se observe rigor histórico.

“Narrativamente, sempre me interessou muito a estranha fronteira entre a realidade e a ficção. Muitas das minhas obras incorporam elementos documentais, diria, mas num contexto absolutamente ficcional. Neste caso, houve uma investigação grande sobre o feminismo e a Revolução, mas as histórias que se contam são absolutamente inventadas”, sublinhou.

“O conteúdo tem muito que ver com a ideia de corpo, a forma como o corpo de cada um de nós está sujeito a pressões externas, ligadas às relações económicas, sociais e políticas. Daí o formato tripartido da peça. Não é algo caprichoso, torna presente a ideia do corpo, que é central: o corpo convertido em algo pequeno, com as marionetas, maior no formato teatro, e ainda o culto do grande, no filme final.”

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A peça estreou-se em Berlim há poucos dias e chega a Lisboa para duas apresentações

Não é a primeira vez que o trabalho de Mariano Pensotti se apresenta em Portugal. É a segunda. Em abril de 2015 deu a conhecer “El Pasado es un Animal Grotesco”, no Maria Matos, e “Cineastas”, na Culturgest.

Mariano Pensotti estreou-se como autor e encenador há 16 anos, com “Ojos Ajenos”. É considerado um dos nomes principais do teatro argentino atual, tenho recebido vários prémios, incluindo o Rozenmacher, do Festival Internacional de Buenos Aires.

Trabalha a partir da capital argentina, com uma equipa residente de quatro pessoas: uma cenógrafa, um músico, um iluminador e uma produtora.

“Somos um grupo bastante eclético”, classificou Pensotti. “Interessa-nos trabalhar obras de teatro em espaços teatrais, mas também através de intervenções urbanas ou instalações, coisas no limite do teatral. Ampliar as fronteiras é uma coisa que me interessa. Nesta peça, por exemplo, há um princípio, meio e fim, mas não necessariamente por esta ordem. Sou um pouco paradoxal. A minha maneira de contar histórias é bastante clássica. Escrevo quase sempre os textos e tenho sempre um texto antes de começar a trabalhar com os atores. Eles é que começam a modificá-lo à medida que avança o processo de ensaios.”

Uma das referências literárias do autor são os grandes romances do século XIX, ao estilo the great American novel. “As obras em que se tentava criar um mundo com personagens de ficção mas factos reais, com posicionamento político e sociológico. As novelas tinham a pretensão de se converterem num mundo em si mesmas. De certa forma, um dos temas que atravessam as minhas últimas obras é o de saber o que nos faz ser o que somos, a ideia de como construímos ficções a todo o tempo e, por outro lado, como as ficções nos constroem a nós.”