Comecemos isto com uma experiência. Faixa número 1 de Homework, álbum editado a 20 janeiro de 1997. Deixamo-la rodar hoje e a mesma pergunta de há 20 anos mantém-se. O título do tema é “Daftendirekt” e a pergunta é “como é que eles fizeram isto?”. Como é que Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo pegaram na música de dança que existia antes deles e mudaram-na para sempre. Sem qualquer humildade, eles que usem as expressões aDP e dDP. Antes o mundo dançava de uma maneira, depois dançou a sério.

Homework tem este título porque foi feito no estúdio caseiro de Bangalter. Dois produtores wannabe a dar 20-0 a muitos outros com maior currículo. Gente astuta, então com 20 e poucos anos e uma rara capacidade de juntar duas qualidades: assimilar o passado e a ambição de criar o futuro. Da house, do techno e das raves do início dos noventas ao passado feito de disco, rock e funk, mais uma pontaria tremenda para chegar onde ninguém antes tinha estado — uma ausência de gravidade na pista de dança que ainda hoje levanta o chão.

daft punk homework

“Homework”, dos Daft Punk (Virgin)

Não eram os mesmos que fizeram o último Random Access Memories, de 2013, e é isso que faz a diferença: na altura não queriam ser iguais ao que já existia e assim continuam. Ainda não usavam máscaras de alta costura robótica mas já faziam por nunca aparecer da mesma maneira, com a mesma cara. Truques da noite que só acaba de manhã, daquelas que nunca se repetem.

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A música dos Daft Punk também é assim, desde o primeiro álbum: feita de repetições mas só aparentes, a pedir baile mas também a pedir atenção, que o compasso anterior nunca será igual ao seguinte. Tal como Michel Gondry ilustrou num dos melhores telediscos da história da pop (classificação nossa mas que nos parece perfeita):

https://www.youtube.com/watch?v=k5dqPiLy4uY

O melhor de tudo? Isto foi só o começo. Haveria Discovery (2001) ou Human After All (2005), remisturas, singles, EPs e bandas sonoras. E concertos. Que concertos. Ao vivo os Daft Punk são difíceis de explicar a quem não esteve lá (ah, o Sudoeste em 2006…), por isso continuamos sempre à espera: mas vêm cá ou não?

Porque isto dos 20 anos é bonito, regressámos a 1993, o ano em Thomas e Guy-Manuel conheceram Stuart McMillan, que com Orde Meikle forma a dupla de DJs/produtores Slam. Foram eles que fundaram a Soma, editora que lançou os singles “The New Wave” em 1994 e “Da Funk” em 1995 (tema que faria parte de Homework). Atirámos por email umas quantas perguntas a McMillan, que, entre as respostas, mantém a mesma ideia que guarda há mais de 20 anos: nunca mais ouviu nada assim.

O que recorda do dia em que conheceu os Daft Punk?
Fomos a Paris uns dias antes da festa na Euro Disney onde íamos tocar. No apartamento de um amigo comum que tínhamos por lá conhecemo-los. O Thomas e o Guy-Manuel estavam muito tímidos, lembro-me bem. Falaram-nos da música deles e de como eram fãs de “Positive Education”, um single que tínhamos lançado pouco tempo antes. Acabámos por combinar um novo encontro depois desse fim de semana. Regressámos a Paris. Fomos a casa do Thomas, era um apartamento ao lado da casa dos pais dele, em Montmartre, onde ele tinha um estúdio.

O que pensou quando ouviu pela primeira vez a demo que eles lhe mostraram, em 1993?
Eles mostraram-me essa demo nesse mesmo dia. Quando ouvi aquilo parecia que não estava a acreditar, foi totalmente inesperado, a música deles era fantástica. E foram esses mesmos temas que depois integraram o single deles que editámos um ano depois, em 1994, o “The New Wave”. Quando voltámos para Glasgow eles enviaram-nos uma cassete com as quatro faixas dessa demo. Respondemos com um “por favor, enviem-nos essa DAT, temos que editar isso”. Tornou-se a edição Soma número 14.

[o single de 1994, “The New Wave”:]

Qual era o panorama geral da música eletrónica nesses dias?
Era fresca, crua, excitante e havia muito menos do que há hoje. Ao mesmo tempo, havia mais faixas que se destacavam, mais produções que chamavam a atenção, coisas mais inesperadas. E não havia muita gente a tentar copiar outros, era tudo mais original.

Onde estavam os Daft Punk no meio disso?
Os Daft Punk foram influenciados pelas cenas de Chicago e Detroit, sobretudo o início desses movimentos, o som house com a assinatura de produtores como Sneak ou Cajmere. Também gostavam daquilo que fazia Carl Craig… mas o gosto de ambos era muito abrangente, passava também pelo rock e pelo disco, os primeiros nomes do disco. Fizeram-se produtores notáveis e influenciaram toda a gente no mundo da pop e da música de dança. Hoje ouve-se o som dele em toda a parte, eles conquistaram o dom da ubiquidade.

Muzik_(magazine)

Os Daft Punk na capa da revista “Muzik”, em 1997

Depois desses primeiros encontros, manteve o contacto com eles?
Claro que sim. Eles lançaram os primeiros três singles — incluindo o “Da Funk”– pela Soma e também fizeram algumas das primeiras atuações nas nossas noites em diferentes clubes. Incluindo a primeira Tenda Slam no festival T in the Park, aqui na Escócia [McMillan vive em Glasgow], em 1997. Há pouco tempo vimos o Thomas em Paris umas quantas vezes. Neste momento eles estão fechados no estúdio.

Quando a Soma editou as primeiras coisas dos Daft Punk, que reação houve?
Daquelas reações que vão crescendo com o tempo. O “The New Wave” vendeu duas mil cópias, que naquele tempo não era muito. Quando saíu o “Da Funk” com o “Rollin’ & Scratchin'” aconteceu o mesmo. Mas gradualmente os DJs começaram a pegar nos temas, a tocá-los. Gente como o Richie Hawtin ou o Dmitry, dos Deee-Lite. Passados uns 8 meses, o nome deles rebentou. Tivemos que fazer muitos mais discos, o mais rápido que conseguimos. Venderam 25 mil discos. O hype foi tal que acabaram por assinar por uma major [a Virgin], não podia ser de outra maneira.

Hoje são um fenómeno de popularidade. Semana sim, semana não, há rumores de um novo álbum ou de uma nova digressão.
Merecem tudo isso. Já tocaram nos Grammys, com o Stevie Wonder, o Pharrell Williams e o Nile Rogers, com o Jay Z e a Beyoncé a dançar na plateia. Nessa altura eram o maior grupo do mundo.

https://www.youtube.com/watch?v=T-j4I-vFw_g

São inovadores, talentosos e fazem a música pop perfeita, dançável e viciante. Mas não vão tocar ao vivo porque sentem que a cena da música de dança se tornou foleira e previsível. Neste momento são um grupo só de estúdio — como os Beatles também foram.

E qual o melhor disco que fizeram?
Parece mal se disser que é o Homework, que inclui alguma da música que a Soma editou anos antes?