What the hell is fine dining in 2017? Se há alguém com legitimidade para colocar esta questão, traduzida no título do artigo, é Daniel Burns, chefe canadiano que esteve na cozinha do Loco na última terça-feira a convite de Alexandre Silva para o primeiro de uma série de 10 jantares especiais a acontecer no restaurante ao longo deste ano.

Antes de se aventurar, em causa própria, no recém-encerrado Luksus, Burns passou por algumas das cozinhas mais influentes e criativas do mundo. Cozinhas essas onde esta questão se terá colocado diversas vezes a cada ano. Do Fat Duck, de Heston Blumenthal, ao Noma de René Redzepi, com uma incursão pela chefia do departamento de pesquisa e desenvolvimento do Momofuku, de David Chang.

Mas mais do que este currículo de respeito, foi a sua capacidade de “identificar tendências e trocar ideias” que convenceu Alexandre Silva, chefe do Loco, a convidá-lo para esta iniciativa. A ele seguir-se-ão nove dos seus pares, o próximo já em abril. Alguns deles participaram, tal como Alexandre e Daniel, no festival Gelinaz, aquele que baralhou e distribuiu 40 chefes do mundo inteiro pelos respetivos restaurantes.

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O Luksus funcionava na sala das traseiras deste bar especializado em cervejas artesanais, chamado Tørst. Apesar do restaurante ter fechado no final de 2016, o bar continua aberto. Fica em Brooklyn. (foto: DR)

A ideia, como explicou o anfitrião ainda antes do jantar, é que quem venha de fora traga “técnicas e pratos próprios mas que esteja disposto a trabalhar com produtos nacionais.” E que traga, também, uma mentalidade semelhante à do Loco, onde os desafios criativos são uma constante: tanto assim é que — novidade em primeira mão — daqui a uns meses, lá para meados deste ano, irão abrir uma cozinha-laboratório experimental contígua ao restaurante, com direito a equipa própria.

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Mas voltemos a Daniel Burns, que estava a cortar batata doce japonesa para um escabeche, parte do couvert que foi servido, quando acedeu ao pedido de entrevista. “Está controlado, não há stress”, diz a sorrir, em resposta ao pedido de desculpas pela interrupção. Stress, de facto, é coisa que não parece afetá-lo: voz baixa, frases ponderadas e uma dose considerável de curiosidade sobre o que se come em Portugal. “Gostei muito do peixe e marisco que encontrei, trouxe cavala e raia para o menu. Vocês comem muita raia?” Nem por isso, Daniel. Menos ainda acompanhada por puré de aipo e a respetiva raiz fumada, como foi o caso. Já a cavala surgiu com beringela e um pickle de nozes verdes, o único produto que atravessara o Atlântico com o chefe.

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Um dos pratos apresentados por Daniel Burns: Raia, Raiz de Aipo Fumada e Dulse.
(foto: © Paulo Barata)

Ao longo dos últimos dois anos e meio, Burns dedicou-se a harmonizar cervejas artesanais e alta cozinha no tal Luksus (luxúria, em dinamarquês), que funcionava nas traseiras de um pequeno bar em Brooklyn, o Tørst (sede), aberto em parceria com o cervejeiro dinamarquês Jeppe Jarnit-Bjergsø, da Evil Twin. A experiência levou-os, inclusive, a fazer um livro, intitulado com assinalável pragmatismo nórdico: Food & Beer.

Esse pragmatismo estende-se às suas criações gastronómicas. É verdade que Burns veio do Norte da América e não do Norte da Europa. Mas não é difícil encontrar-lhe influências do tempo passado no Noma, mesmo que aí as suas preocupações fossem outras — liderava a secção de pastelaria. “Essa época ajudou-me a saber pensar à frente. Um tipo que esteja a tratar da carne pensa tarefa a tarefa. Um pasteleiro tem de pensar que preparações vai fazer daí a dois dias“, recorda.

O menu servido nesta noite teve, ao todo, 13 momentos. Desses, apenas três ficaram à responsabilidade integral de Alexandre Silva e respetiva equipa do Loco. “Queremos que os convidados tomem a cozinha como sua”, justificou. Ainda assim, houve oportunidade para a equipa da casa brilhar. Exemplos? Língua de Vaca, Sementes de Mostarda e Salsa, prato que foi alvo de várias experiências até se chegar ao ponto perfeito de cocção: 48h a 58º. A sobremesa, de autoria de Carlos Fernandes, também não deixou ninguém indiferente. Chamou-lhe Citrinos e Especiarias, tendo como base o pomelo, com yuzu e tangerina, vindos, todos eles, do Lugar do Olhar Feliz, no Cercal. A sobremesa de Daniel Burns foi, também ela, uma ótima surpresa: Cenoura, Beterraba e Iogurte, com um curiosíssimo suspiro de vinagre. Antes, explicara a sua filosofia de pasteleiro: “As minhas sobremesas sempre foram menos doces e mais de época.”

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Esta língua de vaca foi cozinhada por Alexandre Silva a 58º durante 48h.
(foto: © Paulo Barata)

A abrir e em homenagem ao Luksus, foi servida uma cerveja pilsener produzida no Loco. Todos os restantes pratos foram acompanhados por vinho. Mas será essa uma obrigação no mundo da alta cozinha? Daniel não acha e o Guia Michelin deu-lhe razão: o Luksus foi o primeiro restaurante nos Estados Unidos a ganhar uma estrela sem vinho no menu. A explicação: “O vinho depende das castas e do terroir, logo da localização. A cerveja não: é possível fazer cerveja de todo o tipo em qualquer lado, basta mandar vir os produtos certos. E depois podemos introduzir um aroma ou outro que achemos interessante, fazer todo o tipo de combinações.” Desafiar o habitual emparelhamento vínico foi mais uma razão para, como refere “querer trazer a cerveja para este mundo”.

Daniel não tem uma resposta concreta para a pergunta inicial, mas o tempo passado no Luksus ajudou-o a formular hipóteses. Este jantar, e outros que já tem combinados nos próximos meses, servirão os mesmos propósitos. Depois, conta, pretende aplicar a experiência que traz do mundo do fine dining a numa geladaria, em Nova Iorque. Sim, uma geladaria. Aliás, porque não uma geladaria? “Afinal, o que raio é a alta cozinha em 2017?”