Três pistas é o suficiente, certo? Vamos a elas: melhor do mundo, português a viver em Madrid e apelido com nome de cidade. E agora, quem é quem? Fácil, Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Hããa? Vocês devem estar ceguinhos é o que é. Só mais uma dica para ver se nos entendemos: nascido em 1985. Olha-m’este, o Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro é de 5 Fevereiro 1985. Esta malta só vê futebol à frente, tsss tsss.

Então não se vê logo que é o Ricardo Filipe da Silva Braga? Melhor do mundo no futsal, o Ricardinho do nosso contentamento joga no Inter Movistar e recebe-nos no Hotel Intercontinental, ali na Rua Castilho, paredes meias com o Ritz. À porta, um Aston Martin prateado devidamente inspeccionado pelo concierge, vestido de forma impecável. As portas abrem-se automaticamente umas atrás das outras e somos encaminhados para o quarto 1192. Lá dentro, a vista sobre Lisboa é arrebatadora. Deitado num sofá cinza, Ricardinho levanta-se e cumprimenta-nos com um forte passou-bem antes de desaparecer de vista para trocar de roupa. Nesse instante, a assessora aproveita para indicar o tempo limite da conversa: 30 minutos. Meia-hora? Não, isso é que não. “Estique lá para os 31, um minuto por cada ano de vida do Ricardinho.” Challenge accepted.

Partida, largada, fugida.

O Eusébio faz hoje 75 anos [Ricardinho abana afirmativamente a cabeça com conhecimento de causa]. Conheceste-o nos teus tempos de Benfica?
Sim, sim. É uma referência mundial. Ainda hoje, é um nome falado em todo o mundo. Isso diz tudo sobre ele. Qualquer um cresce a ouvir falar dos seus golos, do seu trajecto, da sua força. Tive a sorte de estar com ele em alguns eventos do Benfica e era uma pessoa bem-disposta, animadora e sempre pronta a sacar uma história que nos fazia sorrir.

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Falaste em referência. Tinhas alguma na tua infância?
De ver ao vivo, Jardel, Drulovic [faz o gesto da trivela com a mão direita e depois com a esquerda], Zahovic, Capucho.

Tudo FC Porto.
O meu pai passava a semana a trabalhar no mercado abastecedor do Porto e ia vender cerveja às Antas, no fim-de-semana.

Ias com ele?
Ah pois, claro. Ele perguntava: ‘Ricardo, queres vir?’ Ai não, quem diria não?

Como iam?
De moto. O meu pai a conduzir e eu atrás. Entre nós, quatro ou cinco grades de cerveja. Íamos por caminhos alternativos [serpenteia com a mão direita, a imaginar a cena], onde a polícia não estava.

Quanto tempo, o caminho?
Uns 25/30 minutos.

Duro.
Era apertado, sim. Só que valia a pena, pela satisfação de chegar ao estádio e também pela venda das cervejas.

Cervejas, cervejas e mais cervejas. Nada de comida?
Para venda, só cerveja.

Tu comias habitualmente o quê, francesinha?
Nãããão, nada disso. Naquele tempo, uma francesinha era um luxo para nós. Comia muito panados com arroz. Aquilo era o nosso arroz com feijão do Brasil. Panados, panados e panados.

Muito bem. Nas Antas, aproveitavas para ver os jogos?
Sempre, sempre. A parte que interessava era vender a cerveja. Só depois de esgotado o stock, pedia autorização ao meu pai para entrar no estádio.

Ainda falta a parte de entrar no estádio?
[Ricardinho ri-se com gosto] ‘tava tudo controlado, o porteiro já me conhecia e dizia-me sempre para entrar, encostar-me a um canto e voltar daí a uns minutos.

E gostavas de futebol?
[olha-me em jeito de ‘brincas, não?’] Sempre quis ser jogador.

De futebol de 11?
Sim, de 11.

Jogavas onde?
Vamos lá ver: o meu pai é do Cerco e a minha mãe de Fânzeres. Juntaram-se e foram viver para Fânzeres. Depois, tinha eu uns oito anos, fomos para Gondomar.

Que tal?
Era um bairro social com um ringue. Bastava isso para me fazer feliz. Era uma maravilha, porque jogava à bola com os amigos até dizer chega. Não havia horários. Para a bola, nunca há horários.

Querias chegar onde?
A minha família é do FC Porto, o objectivo era chegar a jogar no FC Porto.

O que falhou?
Um dia, jogava eu no Cerco do Porto, aos 13 anos de idade, marquei os quatro golos da vitória sobre o Salgueiros por 4-1. Estava lá um treinador do FC Porto, o Frasco.

Estás a falar d’O Frasco?
Esse, o do FC Porto campeão europeu e mundial em 1987.

E então?
O Frasco convidou-me para ir jogar lá. No ano seguinte, fui lá. Só que o treinador já era outro, tinha uma ideia diferente e fui.

Como assim?
Era baixinho, disseram-me [só para que conste em acta, o Ricardinho mede 1,67 m e é sete centímetros mais alto que o Rui Barros, figura incontornável do FCP nos anos 80 e 90]

E a tua reacção?
Fiquei todo partido. Durante sete meses, não quis saber de bola. Mesmo.

E quem te puxou?
Uma treinadora que me viu a jogar. Insistiu, insistiu, insistiu. Chegou a ir a minha casa tentar convencer-me a voltar. Às tantas, apareceu-me um amigo… Nestas ocasiões, e com aquela idade, vamos sempre atrás dos amigos. Ele disse que ia treinar futsal a um clube e convidou-me. Como lhe dei a nega, ele passou ao ataque e pressionou-me. Pronto, lá fui.

Foi remédio santo?
Para mim, sim. Para ele, nem por isso.

Então?
Eu fiquei, ele não [atira-se ligeiramente para trás a rir].

A partir daí, o céu é o limite.
É uma alegria imensa olhar para o passado e viver este presente.

https://www.youtube.com/watch?v=zgM8_2v4ZXg

Como é que isso acontece?
Por etapas. Falo por mim, quero dizer. Quando deixei o sonho de futebol de 11, abracei o futsal e percebi a dinâmica da coisa. Aprendi gestos e repeti-os até à exaustão, estudei movimentos e aperfeiçoei-os. Numa primeira fase, só queria jogar futsal. Depois, já sonhava ser o melhor português.

Quem era?
O André Lima, por exemplo.

Jogaste com ele, certo?
No Miramar, no Benfica e na selecção. Uma pessoa sensacional, ajudou-me sempre, sempre, sempre. Tinha uma imagem gravada que é a dele levar-me de carro, um Opel Corsa cinzento, dos treinos do Miramar até casa. Depois, no Benfica, dividia uma casa com ele e o Arnaldo.

Continua, continua. Sonhavas ser o melhor português e depois?
Depois, entrar no top 10 mundial. Ainda me lembro do dia em que recebi um email da federação internacional a dizer-me que estava no top 10. Foi a loucura. Depois, entrar no top 3. Depois, o topo.

Pliiiiiim, já chegaste. Qual é a sensação?
A melhor possível, claro. Até porque esta escalada continua. O segredo é continuar a trabalhar, sempre com os melhores. Nesse aspecto, Espanha é um país extraordinário para esse salto de qualidade.

Como foi o dia em que chegaste ao topo?
Estava a dormir.

Quê?
Sério. No ano anterior, não tinha entrado no top 3 e fiquei assim prò desanimado. Nesse dia, os meus amigos souberam da notícia e informaram os meus pais. Como estava a dormir, não reparei nas chamadas perdidas. De repente, tinha os meus pais lá em casa a felicitar-me e mais um batalhão de amigos.

Gostas de Madrid?
Adoro. Estou a 50 minutos de casa, dou-me bem com toda a gente, a liga é a mais exigente possível com grandes jogadores e grandes treinadores.

E a sesta?
Uyyyyyy, já me habituei àquilo. Nos primeiros tempos, durante os estágios, eles almoçavam e iam dormir para o quarto. Eu era a excepção, ficava sempre sozinho umas horas. Às tantas, comecei a adoptar os horários deles e já sou um deles.

E as tapas, aquilo é impossível de se evitar.
Tenho de evitar. Mesmo. Faço um esforço enorme [Ricardinho parte-se a rir]. Se não, engordava uns 30 quilos e jogava a pivot.

Estás em Madrid, casa do Real. Vais muitas vezes ao Bernabéu?
Conheci o Sergio Ramos e foi empatia à primeira vista. Ele já me levou algumas vezes lá abaixo, ao balneário, e envia-me convites para ver os jogos no camarote dele. Gente boa, muito boa.

O Inter é a tua terceira experiência no estrangeiro. Antes, a Rússia.
Estive lá pouco tempo, porque não gostei de muitas coisas.

Por exemplo.
Só havia uma hora de treino por dia [CSKA Moscovo]. Isso, para mim, é pouco, muito pouco. Se ganhamos dinheiro para treinar e jogar, devemos aplicar-nos.

E mais.
Se é verdade que se falar inglês nas ruas, olham sempre de lado para os estrangeiros. E há a questão dos ex-boinas verdes.

Como é que é?
[Ricardinho arregala os olhos e abana a cabeça para cima, para cima, para cima, para baixo] Ah pois é, um dia por semana, esses militares saem para a rua e batem em todos os estrangeiros que virem à frente.

Como sabem eles quem é ou não estrangeiro?
Sabem, simplesmente sabem. Fazem por saber, entendes?

Errrrrr, não.
Acontece, digo-te. Os meus companheiros de equipas avisavam-me com antecedência, tipo ‘olha, não saias de casa no sábado porque é aquele dia’.

Chi-ça, isso é arrepiante.
Atenção, há pormenores bons dessa aventura. Encontrei grandes profissionais do futsal no CSKA que se tornaram amigos para a vida. Ainda hoje troquei mensagens com eles, a propósito do jogo de 6.ª feira.

A nível turístico, algum detalhe impressionante?
Impressionante é a Praça Vermelha. Quando estás perto, sentes a grandeza. Quando estás lá, perdes-te ali no meio. Aquilo é lindo, magnífico.

Antes da Rússia, o Japão. Sabes falar japonês?
Nem que estivesse lá anos e anos.

Mas aprendeste o quê?
No contrato com o Nagoya Oceans, estava lá a obrigatoriedade de aulas de japonês. Eu, os dois brasileiros e um peruano. Fixas sempre palavras, expressões. Claro que sim, só que falar como eles falam, nem vale a pena. Quando estava lá, dava uns toques aqui e ali. A partir do momento em que deixas de praticar, esquece.

Isso é a falar. E a escrever?
Uyyyyy, nunca tive jeito para desenhar casinhas [e sai mais uma gargalhada mais gestual que sonora].

Como fazias na rua?
Primeiro, fiz o reconhecimento do território. Ou seja, procurei os restaurantes que mais gostava e passei a lá ir com frequência. Eram uns seis ou sete. Depois, havia sempre o meu tradutor. Era um brasileiro, gente boa.

Ele ajudava-te na escolha dos pratos?
O problema nem é esse, porque eles têm desenhos. O problema é mesmo a comunicação. Quando havia entraves, ligava ao tradutor e ele resolvia-me num instante.

Japão, imagino que seja um mundo à parte.
Nem imaginas. Acho [ri-se com gosto]. O curioso é que achei uma mudança enorme viajar do Porto para Lisboa. Porque nunca tinha entrado num shopping, porque nunca tinha andado de metro, porque uma série de coisas. A partir do momento em que me habituei a viver aqui, em Lisboa, fiquei tranquilo e com um gosto imenso em conhecer outros mundos. A minha sorte foi ir parar ao Japão. É incrível como pode haver uma cidade ainda mais evoluída, com uma arquitectura tão diferente e uma cultura tão diferente.

A cena da falta de lixo no chão, não é?
Verídico. És multado. Se te apanham a fazer lixo, apanhas multa. Na hora. É tudo limpo, tudo ordeiro. Andava muito de bicicleta, vê lá bem. Estamos a falar de Tóquio, uma cidade das mais populosas do mundo. Há gente em todo o lado e há espaço para andar de bicicleta. Incrível, é o Japão.

O Japão é tudo isso e tu sais de lá. Porquê?
O terramoto de 2011 deixou-me marcas.

Bolas.
Ah pois. Íamos ter um jogo de Taça e as equipas viajam de táxi de umas cidades para as outras. No meu táxi, ia eu, os tais dois brasileiros e o tal peruano. De repente, a terra abana e nós começámos a brincar com a situação uns com os outros. No instante seguinte, o silêncio apoderou-se de todos nós. Os prédios abanavam como árvores e isto é verdadeiramente impressionante pela mistura de emoções: tanto é incrível de ser visto como mete medo. Medo, mesmo. As árvores, propriamente ditas, pareciam que iam ao chão. E o chão, esse, abria fendas aquilo e ali. Quando acalmou, a equipa regressou à base. Fomos para um hotel, acho que um 11.º andar. Ou seria 8.º? Já nem me lembro. Do que lembro, e bem, é que um tremor de terra tem sempre réplicas. Umas 20 ou 30. À quarta, já toda a equipa estava na recepção sem arredar pé para os quartos. Por isso, decidi sair de lá.

Antes do Japão, o tal salto Porto-Lisboa. O que mudou em ti?
Antes de mais, o clube.

Eras do FC Porto?
Se te dizem desde pequeno, que o azul é a melhor cor, tu aceitas. Se fosse vermelho, amarelo ou verde, era a mesma coisa. Cresci como adepto do FC Porto, no meio de uma família do FC Porto. Nunca fanático, atenção. Gostava, só. Quando aterrei em Lisboa, comecei a absorver o mundo Benfica e, aí sim, senti-me apaixonado pelo clube. Passava horas e horas dentro daquele mundo. A praticar futsal e a ver futebol, hóquei em patins, basquetebol, voleibol, isto e aquilo. Quando entrei na Luz, senti uma força diferente. Tinha de ser do Benfica.

E o teu pai?
Dizia-me sempre, algo espantado ‘mas o Benfica não ganha nada, o Porto é que é’. E era verdade, aquelas equipas de futebol do Benfica não ganhavam nada [e faz um esgar engraçado com o queixo]. Mesmo assim, sentia-me benfiquista. Agora é o que é [refastela-se no sofá, em tom triunfante]

[ouvem-se passos, vem aí a assessora, escondam-se todos]

Última pergunta: os teus filhos seguem a tua carreira?
A mais nova, nada, nada. Ainda é muito nova, a Riana tem quatro aninhos, nem sabe quem é o pai no mundo do futsal. O meu filho, esse, é mais atento. Tem nove anos e joga bem futsal. No outro dia, chegou a casa e disse uma daquelas pérolas: ‘ò pai, hoje estive a quase para bater num miúdo.’ Perguntei-lhe o porquê. E ele, muito calmo: ‘Ele disse que o melhor do mundo é o Ronaldo e tu é que és.’