Martim* gastou 21 mil euros num carro que quis pôr ao serviço da Uber. Paga uma prestação de 270 euros mensais, mas há cerca de duas semanas que o carro está parado. “Não estou para pagar multas de 5 mil ou 15 mil euros. Não vou arriscar”, conta ao Observador, no dia em que os taxistas se reuniram à porta fechada com elementos do gabinete da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa. Por causa da “falta de coragem da PSP”, como disse Carlos Ramos, da Federação Portuguesa do Táxi, ao Observador.

Quando Martim fechou a porta do carro, abriu outra: a do táxi. (Sim, leu bem.) Antes de ser motorista Uber, Martim era taxista. Trabalhou durante quatro anos numa empresa de táxis tradicional, depois passou para os Táxi A, considerados “de luxo”, até que decidiu investir num carro e empresa de turismo própria. Quando estacionou o carro com o qual presta serviço para a Uber, pediu ajuda a um colega que tem uma empresa de táxis.

Preciso de pagar as minhas contas. Vou trabalhar como taxista pelo menos mais uma semana, depois não sei o que vou fazer”, explicou.

Martim não é o único a encostar o carro com “medo” das multas que desde o final de novembro podem ser cobradas pelo Instituto da Mobilidade e Transportes (IMT) e que seguem as instruções da polémica Lei 35/2016, de 21 de novembro. Trata-se da lei que intensifica as coimas aplicadas ao serviço de transporte em táxi ilegal, que inclui pela primeira vez “plataformas eletrónicas”. Em dois meses, foram autuados 131 motoristas que prestavam serviço para a Uber e Cabify.

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João Pica, presidente da Associação Nacional de Parceiros das Plataformas Alternativas de Transportes (ANPPAT) disse ao Observador que já há “dezenas de carros parados“, porque as empresas parceiras das tecnológicas estão com receio das multas.

Tenho conhecimento de que há pelo menos uns seis ou sete parceiros que pararam atividade até que se esclareça de uma vez por todas o que se está a passar. Estamos a falar de dezenas de carros, de duas ou três empresas que têm cerca de seis, sete carros cada”, diz.

Chetane Meggi, fundador da outra associação que representa o setor, a Associação Nacional de Transportadores Utilizadores de Plataformas Eletrónicas (ANTUPE) concorda. “Dos contactos que tenho recebido, há pelo menos cinco empresas com os carros parados por causa das multas. Querem “aguardar que a proposta de regulamentação seja aprovada”, disse ao Observador. A ANTUPE já tinha aconselhado os associados a suspenderem a atividade, tal como o Observador noticiou na semana passada. E A ANPPAT lançou uma petição para que a regulamentação seja aprovada “com urgência”.

Em dois meses, a PSP multou 131 carros Uber e Cabify. Mas é o IMT que vai decidir sobre as coimas: para as empresas os valores oscilam entre 5 mil e 15 mil euros, e para os motoristas variam entre 2 mil e 4.500 euros.

“Não faça isso à minha frente”, pediu agente da PSP

João Santos tem uma empresa na área do turismo, com quatro carros e cinco pessoas a trabalhar como motoristas, duas com contrato de trabalho e três a recibos verdes. A 6 de janeiro, um dos motoristas foi mandado parar por um agente da PSP na zona das partidas do aeroporto. “O condutor estava a transportar uma pessoa para o aeroporto e o agente abordou-o, pediu a identificação, a documentação do carro e pediu-lhe uma licença que, supostamente, não existe”, conta ao Observador.

Como é que o agente sabia que o condutor estava a prestar um serviço para a Uber? “Porque os condutores colocam o telemóvel no tabliê, para que o cliente veja o caminho que está a percorrer. Quando o condutor foi abordado, disse-lhe que estava a fazer um serviço”, explica. A empresa foi multada em 5.000 euros, a 6 de janeiro, mas ainda aguarda a notificação do IMT.

A Uber disponibilizou-se para dar ajuda a nível jurídico. Reportámos logo e disseram-nos para aguardarmos pela notificação do IMT, para depois apresentarmos recurso”, explica João Santos.

Sobre a atuação da PSP no local, o empresário explica que “o agente fez quase um desabafo e disse ao motorista que isto não ia dar em nada, mas que tinha de cumprir com a sua obrigação. E depois disse-lhe para tentar não voltar ao aeroporto“. Há cerca de três semanas, Martim também foi abordado por uma agente da PSP no aeroporto. “Ela perguntou-me ‘não está a fazer aquilo que eu penso que está a fazer, pois não?’ e eu respondi-lhe que sim, que estava afazer um transporte para a Uber. Ela disse-me ‘então, não faça isso à minha frente’. E mandou-me embora“, contou.

O Observador contactou a PSP para saber como é que os carros estavam a ser identificados pelos agentes (porque não têm dístico visível) e se estavam a aconselhar os motoristas a não fazer serviços para o aeroporto, mas até à hora de publicação deste artigo não obteve resposta.

João Pica corrobora que vários motoristas têm sido aconselhados pelos agentes da PSP a evitar a zona do aeroporto. João Santos diz que não suspendeu atividade porque a sua empresa faz outro tipo de serviços na área do turismo, mas admite que está a equacionar deixar de fazer serviço para a Uber se a ausência de regulamentação “se prolongar no tempo”.

Apanhámos esta multa. Não sabemos se somos obrigados a pagar ou não e, se isto se prolongar, vamos equacionamos parar, mas vamos ter de dispensar condutores. Vou ter de despedir pessoas”, disse.

O que se passa com a lei do transporte ilegal?

Os representantes da Federação Portuguesa do Táxi (FPT) estiveram reunidos com os membros do gabinete da ministra da Administração Interna durante a tarde desta sexta-feira. Ao Observador, o presidente Carlos Ramos disse que os motoristas das plataformas — com as quais rivalizam — estão a ser autuados, mas que os documentos não estão a ser apreendidos e não estão a ser pagas as coimas. Queria, por isso, saber “se há intenções deliberadas [da PSP] em não fazer cumprir a lei”, acusando a força policial de “falta de coragem ou de orientação política”.

Contudo, quem decide sobre as coimas a aplicar é o IMT. Ao Observador, no início da semana, o regulador disse que “a Lei 35/2016, de 21 de novembro, entrou em vigor em 26.11.2016” e que, face “ao curto espaço de tempo decorrido até à presente data”, ainda não tinha decorrido “prazo suficiente para a aplicação de coimas”. Carlos Ramos adiantou esta sexta-feira que a PSP não está a “exigir um depósito, como a lei prevê, porque não tem uma entidade e referência multibanco” — para esta multa em particular.

O IMT disse ao Diário de Notícias que “a norma da lei que pune os infratores segue os trâmites do regime previsto para o Código da Estrada, que inclui a possibilidade de depósito. No caso concreto, as contraordenações aplicáveis incidem sobre o ‘prestador de serviços’ (empresa) e não sobre o motorista que, regra geral, não é trabalhador da empresa”. Quer isto dizer, então, que “não é possível proceder no imediato à notificação do infrator (empresa) e cobrança de coima aplicável”.

Se o processo que envolve a Lei 35/2016 já nasceu confuso, agora agudizou-se. De acordo com um documento a que o Observador teve acesso, as instruções da PSP são claras: “Após análise e discussão com várias entidades, foi elaborado o parecer técnico infra pela Divisão de Trânsito, concluindo-se que os serviços Uber e Cabify, ou outros análogos, até que seja publicado e entre em vigor o diploma que regulamentará estes serviços, estão em violação do n.º4 do art.º 28 (prática de angariação, com recurso a sistemas de comunicações eletrónicas, de serviços para viaturas sem alvará)”.

Se para os taxistas é claro que o serviço de transporte em táxi através de “plataformas eletrónicas” inclui a Uber e a Cabify, para a Uber e para João Pica, presidente da Associação Nacional de Parceiros das Plataformas Alternativas de Transportes (ANPPAT), não. “Nós não prestamos serviço de táxi. Não estamos a ser regulamentados assim, mas enquanto veículos descaracterizados (TVDE). Essa alteração à lei refere-se única e exclusivamente ao transporte em táxi“, disse João Pica ao Observador, na semana passada.

A proposta de regulamentação que pode solucionar a situação da Uber e da Cabify em Portugal já foi aprovada em Conselho de Ministros e a sua discussão está para ser agendada na Assembleia da República. Mas, tal como o Observador avançou na terça-feira, a aprovação do documento está agora dependente do PSD, porque o Bloco de Esquerda e o PCP afirmam estar em desacordo com o Governo nesta questão.

A Lei 35/2016, de 21 de novembro, foi proposta pelo PCP e aprovada no Parlamento com os votos a favor do PS, PCP e Bloco de Esquerda. CDS e PSD abstiveram-se.

*Martim é um nome fictício. Esta pessoa não quis ser identificada com o seu nome verdadeiro.