Título: “Ritmos e Visões”
Autor: José Gil
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 119

josé gil

É tarefa difícil, esta de olhar para os Ritmos e Visões de José Gil. À vista desarmada, não se acha ponta por onde se lhe pegar; passado à lupa o já de si inchado trabalho filosófico, continuamos sem avistar grande coisa. Chumba logo ao primeiro teste da lente microscópica: nem conseguimos perceber bem se José Gil quis escrever um livro sobre Fernando Pessoa, se quis que Fernando Pessoa tivesse escrito vários livros sobre as suas teses.

As duas ideias podiam ser legítimas: poderia querer elucidar o Livro do Desassossego, a Ode Marítima e a Mensagem, ou podia usar os textos como exemplo literário de uma filosofia; podia até esclarecer ou aprofundar a obra de Pessoa, usá-la como ponto de partida ou mero exemplo prático; não se exigiria grande clareza se mergulhasse nas águas mais paludosas da filosofia, nem grande profundidade a um elucidário com estas magras cem páginas; não se exigiria grande rigor na atribuição de ideias a Pessoa se o cerne do livro, mais do que no facto de Pessoa as ter, consistisse nas próprias ideias, nem se impunham grandes voos numa obra de interpretação estrita. O que se pedia era que pelo menos se separassem as águas. Se não tão moisaica tarefa, gostávamos pelo menos que não recolhesse o pior dos vários mundos. Ora, José Gil nem é claro, nem é propriamente original, não aprofunda mas também não traz grande informação.

O livro escora-se na ideia de que a obra de Fernando Pessoa está repassada da ideia de Visão e que as várias visões, intimamente relacionadas com a ideia de multiplicidade, heteronímia, e com a própria concepção da arte, nos são dadas pelo ritmo. Ora, a Visão, segundo nos explica o filósofo, é um espaço nem material nem espiritual em que o espaço interior é projectado. Significaria a visão do abstracto personificado, de uma maneira não absolutamente controlável. Enquanto na imaginação vamos, com o pensamento, guiando aquilo em que queremos pensar, na visão fundem-se o pensamento e o conteúdo percepcionado, de tal modo que a imagem ganha um novo aspecto dado pelo pensamento (na linguagem de José Gil, o pensamento desintelectualizado integra-se na imagem desimaginada). Esta visão tem como característica o facto de se apresentar como passível de realização, daí que gere naquele que tem a vontade de a concretizar: é por isso que o sujeito, neste caso Fernando Pessoa, procura escrevê-la. Como resposta à promessa performativa da visão (sic).

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Tirando uma ou outra passagem mais fantasiosa, como quando José Gil anima a plateia com um contorno mais místico e chama “profética” à visão, esta primeira ideia é aceitável. Casa, até, com aquilo que poderia ser uma tentativa de interpretação do sensacionismo e do interseccionismo do segundo ensaio. Aí, enquanto explica a ideia de caos criador e entaramela uns primeiros esquipáticos sobre a genealogia da arte (os órgãos do sujeito são afectados pelos estímulos, pela erogeneização do corpo constrói a linguagem a partir dos signos pré-linguísticos que estes órgãos dão e a arte recupera estes signos), enquanto se dedica a esta curiosa animação dos nossos órgãos, explica que o mergulho no caos, a desconstrução, é a condição essencial para que o artista possa alcançar o novo a que a arte aspira.

Apesar de algumas confusões (não fica claro se a arte reconstitui o caos ou se cria a partir dele), de não descobrir propriamente a pólvora com a ideia de que a arte aspira ao novo e mesmo apesar de algum mau gosto na versão sofisticada da equiparação do artista ao louco, esta parte ainda se aguenta. Se fizermos orelhas moucas às maiores cantigas que acompanham estes Ritmos, se fizermos ouvidos de mercador às ideias mais campanudas, como a ideia de que a caotização das dimensões faz passar a consciência para lá delas (a nossa consciência dividir-se, ganharmos consciência de porta, de janela, de estômago ou de outra dimensão qualquer? Isto já aconteceu a alguém?), se deixarmos passar isso, ainda conseguimos perceber a ideia. José Gil explica em que consiste a Visão, como é que ela se processa, como o caos é necessário para que das imagens desconstruídas se construa o novo e como Fernando Pessoa, ao fazer isso sobre o seu próprio sujeito, levou isso mais longe.

O problema é que, fora estas gotas de sentido, o que é que temos? Do estilo, não se safa nada. Um Deleuze de chinelo, e chinelo já rafado de tanta lambidela. Frases desconcertantes, como “é preciso que o caótico consista”, não em alguma coisa, simplesmente consista, num imprevisível uso intransitivo do verbo; expressões sonoras “Heteronimização abortada”, sem mais, “máquinas rítmicas”, que nunca chegamos a perceber porque é que são máquinas, frases com verbos de romance de acção “os movimentos do sujeito são sugados pelas coisas visionadas”, frases que soam a profundas mas que tiram a profundidade ao buraco em que se deviam esconder “as multiplicidades constituem-se através do devir”, ou “transformação de sensação de órgão em movimento material do sentir”. O vocabulário, além de pretensioso, escolhido a dedo para provocar sensação, sai muitas vezes naquele tom impressivo, de quem rabiscou só uma ideia no seu caderno de apontamentos da Sorbonne: Fernando Pessoa. Ritmos e Visões, como se a menção de um nome já evocasse toda uma teoria filosófica implícita.

Quando não basta palavra inteira à cegueira dos leitores deveria, aí já como método filosófico, chegar a sua negação. A descrição de todo o processo de chegada à arte é simples: faz-se “desrealizando a percepção”, “desimaginando a imagem”, “desintelectualizando o pensamento”, quando não se “desestrutura”, “desmonta”, “destrói” ou dissolve o que quer que seja para chegar à arte, implique ela “desmembramento do corpo orgânico” ou “desventração da carne”. Como se “desimaginar a imagem” fosse mais do que vago, como se todos tivéssemos uma ideia do nosso pensamento desintelectualizado, como se tudo isto tivesse mais significado do que as soluções paradoxais que apresenta para os problemas que arranja: “é o movimento de caotização que faz sair do caos”, “interior inverte em exterior”, “inconsciente torna-se consciente”.

José Gil, no mais das vezes, parece que nos está a contar uma história com personagens grotescas. Um caos que se torna órgãos fragmentados, que pelo efeito das máquinas rítmicas se pode tornar corpo sem órgãos preparado para o devir. As ideias não são explicadas, são justapostas; os conceitos, além de fantasiosos e anchos na formulação, quando desenvolvidos têm sempre a mesma característica: a de significarem tudo e o seu contrário: a visão “nasce de uma actividade simultânea de análise e de síntese” (como se para analisar não precisássemos de fazer o contrário de uma síntese), temos o “modo interior do exterior”, o “duplo, mas diferente”, o “corpo tornado órgão único múltiplo” e uma progressiva complexificação do texto pela junção de impossibilidades sob o mesmo nome. Temos os órgãos constituídos com aquilo que é próprio da alma, o corpo sem aquilo que o faz ser corpo, o eu que não sou eu, e uma filosofia que consiste em jogar aos antónimos nas margens da rîve gauche.

O que é de interpretação pessoana Pessoa explica-o melhor, o que é de interpretação da vida está tão atabafado numa linguagem absurda, num jogo de conceitos, numa mascarada de sofisticação filosófica, que se torna o exemplo superno de pretensiosismo. As visões não são agradáveis; os ritmos, até nós, duros de ouvido, o notamos: não acerta.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.