“Era muito importante que deixássemos de discutir júris e passássemos a discutir estratégias para o cinema português”, disse ao Observador a produtora Pandora da Cunha Telles. “O sistema atual é mais transparente e não é discricionário.”

A responsável pela Ukbar Filmes – que produziu filmes como “Florbela”, de Vicente Alves do Ó, e “Como Desenhar um Círculo Perfeito”, de Marco Martins – comentou desta forma as críticas dos vários cineastas que anunciaram na terça-feira o corte de relações com o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, por causa das regras de seleção de júris para concursos de financiamento promovidos pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).

Aqueles profissionais não querem comparecer num jantar marcado para sábado na embaixada de Portugal na Alemanha, para o qual está convidado o secretário de Estado, no âmbito da apresentação de nove produções portuguesas no Festival de Berlim, que começa na quinta-feira. Vão ainda pedir a colegas de outros países, presentes na capital alemã, que assinem uma carta de protesto a ser entregue ao primeiro-ministro e ao presidente da República.

Também ligada à Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual (APCA), Pandora da Cunha Telles disse que aceita o convite para jantar com Miguel Honrado.

“Este tipo de boicote é contrário aos interesses do cinema português”, justificou. “Sempre fizemos pressão para que a tutela tivesse uma presença mais ativa nos festivais internacionais, para mostrar apoio ao nosso cinema, e quando um político aceita ir a Berlim há quem não queria jantar com ele. Não faz sentido.”

A polémica sobre a escolha de júris regressou esta semana, mas é um tema com vários anos e tem dividido o setor. Na terça-feira, cineastas ligados à Associação Portuguesa de Realizadores e à Associação de Produtores de Cinema Independente, entre outras organizações, mostraram-se contra a proposta do Governo que revê o regulamento de apoio financeiro a obras cinematográficas (decreto-Lei 124/2013).

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Ouvidos durante o processo de elaboração do novo diploma, não gostaram de saber que Miguel Honrado, responsável pela pasta do cinema, quer manter quase intactas as regras de 2013.

Atualmente, os júris que escolhem filmes e projetos a financiar são designados por um órgão consultivo do Governo (a SECA, Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual, do Conselho Nacional de Cultura). Aí têm assento representantes de realizadores, argumentistas, produtores, distribuidores.

As frases da polémica

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O centro da discórdia entre alguns cineastas o secretário de Estado da Cultura está no artigo 14º do decreto-lei 124/2013, de 30 de Agosto, que estabelece como são compostos os júris dos concursos de financiamento do Instituto do Cinema.

Artigo 14º em vigor

1 – A Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual do Conselho Nacional de Cultura, aprova, anualmente, para cada concurso um júri composto por um mínimo de três e um máximo de cinco elementos efetivos, e três suplentes, escolhidos de entre personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade e com manifesto mérito cultural e competência para o desempenho da atividade de jurado.

Artigo 14º proposto pelo atual secretário de Estado [versão de 2 de janeiro]

1 – Compete ao ICA I.P., após consulta à Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual do Conselho Nacional de Cultura, constituir uma lista de jurados composta por um mínimo de 60 elementos escolhidos de entre personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade, com manifesto mérito cultural e competência para o desempenho da atividade de jurado.

2 – Para cada concurso, o ICA, I.P. propõe a designação de um júri composto por um máximo de 5 elementos efetivos, designados de entre as personalidades referidas no número anterior.

3 – As propostas são submetidas à aprovação da SECA.

Artigo 14º proposto por associações e realizadores em protesto

1 – Para os fins previstos no presente decreto-lei, é constituída pelo ICA, I.P., uma lista de jurados composta por um mínimo de 60 elementos escolhidos de entre personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade, com manifesto mérito cultural e competência para o desempenho de actividade de jurado.

2 – Para cada concurso, o ICA, I.P. propõe a designação de um júri composto por um máximo de 5 elementos efetivos, designados de entre as personalidades referidas no número anterior.

Na versão proposta por Miguel Honrado, passa a ser competência do ICA a criação de uma lista geral de nomes, mas continua a ser a SECA a aprovar os nomes dos júris de cada concurso anual (há concursos para longas e curtas metragens, escrita de argumentos, distribuição de filmes, etc.)

Vários cineastas disseram na terça-feira que deve ser o ICA a nomear os júris, porque no sistema em vigor há “conflitos de interesses”. Não querem que, por exemplo, os operadores de televisão por cabo (Meo, Vodafone e NOS, entre outras) indiquem nomes, por entenderem que isso condiciona o resultado dos concursos: as escolhas recairiam sobre obras consideradas comerciais, que pudessem ser exibidas por esses operadores noutras áreas de negócio que detêm (canais, salas de cinema).

Em conversa com o Observador, Pandora da Cunha Telles sustentou que estas críticas não são unânimes no setor e criticou o modelo seguido até 2013.

“No passado, aconteceu várias vezes que presidentes do ICA, por falta de ideias, quando já não tinham mais nomes para jurados, ligavam a produtores e pediam que estes recomendassem nomes. Não aconteceu só comigo. Não é ilegal, mas era um processo escuro.”

“Pelos resultados dos últimos três anos, confirmáveis no site do ICA, demonstra-se que o sistema atual é mais plural e tem capacidade de apoiar projetos experimentais ou narrativos, com uma enorme diversidade de realizadores e com uma menor concentração de apoios em algumas empresas produtoras”, disse.

A opinião é partilhada por António Ferreira, sócio-gerente da Personna Non Grata Filmes e membro da Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisuais (ARCA).

“A SECA é uma coisa positiva, ao contrário do que querem fazer crer veio criar um sistema mais transparente”, disse ao Observador.

“Agora todos os agentes do cinema podem discutir o que deve ser financiado, antigamente os jurados eram escolhidos unilateralmente pelo ICA, tínhamos uma política do gosto do ICA. Tirando umas exceções, como o Joaquim Leitão ou o António-Pedro Vasconcelos, eram sempre os mesmos a receber apoios. Isso agora acabou.”

António Ferreira explicou que a presença nos júris de representantes dos distribuidores não condiciona as propostas ou os resultados dos concursos.

“Em que planeta é que esta gente vive? O cinema não tem sentido único, há muitos cinemas, há muitos gostos. Não é lógico querermos ter os agentes do mercado do nosso lado, a decidir o que apoiar? Ou vamos fazer filmes para ficarem na gaveta e deixamos de fora os tipos que metem os nossos filmes nas salas?”, questionou.

O argumentista Tiago R. Santos, da Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos (APAD), explicou que atual sistema “é o possível, não é o ideal”. “A SECA é constituída por todos os agentes, o ICA pede a cada organização lá representada que indique nomes de jurados e isso só pode ser visto como um procedimento democrático.”

Um dos argumentistas da série da RTP “Conta-me Como Foi” e de filmes como “Call Girl” ou “Os Gatos não têm Vertigens”, de António-Pedro Vasconcelos, Tiago R. Santos disse que os cineastas em protesto estão a defender interesses económicos.

“O bolo é pequeno e ninguém quer partilhar”, resumiu. “Oiço as declarações de quem acha que está a defender os grandes valores do cinema, mas o que está em causa é dinheiro, como na maior parte das coisa desta vida. Que isso se traduza num ataque constante entre produtores e realizadores é que é nefasto e mesquinho.”

Ainda na terça, o gabinete de Miguel Honrado explicou ao Observador que a revisão da regras implica que na eleição dos júris “o ICA compõe uma bolsa de jurados e distribui os júris pelos vários concursos tendo por base uma lista bastante alargada proveniente da SECA”.

A frase foi mal recebida pela plataforma de cineastas contestatários, que nesta quarta-feira divulgou um comunicado a reclamar uma “clarificação” daquelas palavras, interpretadas como diferentes da proposta de revisão que lhes chegou no início do ano e que criticaram na terça (ver a caixa neste artigo).

Ou existiu uma “omissão grave e deliberada nos esclarecimentos do secretário de Estado [aos jornalistas] ou no entretanto ele terá procedido a uma alteração à versão final do decreto-lei”, acusaram.