Filhos das Mães, o espectáculo que com ousadia e generosidade mostra a maternidade para lá do politicamente correto, que abre guerra ao determinismo ditado pelos especialistas, à superioridade moral, às garantias de felicidade eterna e a uma sociedade que quer apagar as cicatrizes da mais violenta das experiências e torná-la eterno anúncio publicitário em tons pastel. A peça autobiográfica, que junta em palco as atrizes Joana Seixas, Flávia Gusmão, Vera Kolodzig, Katrin Kaasa e Vera Calçada Bastos, está em cena a partir de dia 9 até dia 18, chegando depois ao Rivoli, no Porto, nos dias 24 e 25.

Katrin Kaasa, Joana Seixas, Flávia Gusmão e Vera Calçada Bastos a reverem excertos da peça que fizeram grávidas em 2014. Em toda a peça oscila um jogo entre passado e presente, realidade e imagem da realidade

No sorriso louco das mães batem as leves/gotas de chuva,/Nas amadas caras loucas batem e batem/os dedos amarelos das candeias escreveu Herberto Helder no poema Fonte, acrescentado caudal a esse rio remoto e infindo de mães e filhos, águas e terras férteis, onde se forjaram heróis, messias, impérios civilizações, mulheres loucas e filhos prodigiosos.

Não será por acaso que quase todas as mitologias antigas têm, entre as suas deusas mais poderosas, a grande mãe, simultaneamente amante e assassina dos seus filhos. Desde sempre que a figura da mãe é conotada com a terra e com a própria vida. Com a luz solar do nascimento e com a trevas da terra onde os mortos eram devolvidos em posição fetal. Os corpos das deusas-mãe eram simultaneamente útero e túmulo. Da babilónia Istar, “criadora de povos” que entra em conúbio com o seu filho amante Tamuz, “o filho do Abismo”, até à egípcia Isis, que recompõe e ressuscita o corpo do seu filho Hórus. De Hécuba, rainha de Troia que viu morrer vários dos seus filhos às mãos dos gregos, a Medeia, que matou os seus por vingança. De Jocasta que se tornou amante de Édipo até Maria, a mulher que deu à luz Cristo para depois o acolher e preparar o seu cadáver para a Ressurreição.

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Mesmo que as religiões judaico-cristãs tenham depois reprimido o poder matricial da mulher a verdade é que nos dois momentos fundamentais da vida de Cristo não existe o masculino. Existe apenas a mãe. Primeiro como Virgem dando à luz o Deus-menino e depois como Pietá segurando nos braços o filho morto. Ser mãe, é portando, desde sempre lutar com a vida e a morte, a angústia e o riso, o medo e a esperança e este é o grande tema frontalmente abordado nesta peça.

São estes milénios de tempo circular, de deuses e impérios, de vida e morte que vemos ressurgirem à nossa frente nos corpos nús das atrizes que, dançando sobre o palco negro, deixam ver as marcas físicas deixadas na sua pele, na sua carne pela maternidade recente, que amamentam com seios fartos de deusas as bocas dos seus filhos e filhas que estão também em palco. Que falam dos fluidos que de agora para sempre as ligarão às suas crias: liquido amniótico, urina, fezes, saliva, palavras (por alguma razão a nossa língua original se chama “Materna”).

E em cada um de nós, espectadores, acorda essa memória esquecida, desse tempo sem tempo em que vivemos a mais extraordinária das metamorfoses dentro de outro corpo vivendo também ele uma metamorfose física e psicológica sem precedentes, somos filhos e mães, ditadores e loucos, guerreiros, recapitulamos a nossa história pessoal e a história da Terra. Mas depois é preciso que se diga: “É mais fácil ser-se grávida do que ser-se mãe, foda-se!”

A actriz Flávia Gusmão amamenta a filha Rosa em palco na peça Filhos das Mães

Apesar de evocarem estas figuras maternas que vão de Medeia à poeta Sophia de Mello Breyner que teve cinco filhos mas que queria era fugir de tudo “para se meter num carocha ir ao encontro da sua fonte grega”, o texto da peça foi escrito pelas cinco atrizes e pelo encenador Martim Pedroso a partir de experiências autobiográficas. Isto faz da obra um palimpsesto onde se cruzam memórias de infância reais ou ficcionadas, factos da maternidade recente, imagens do espetáculo Consegues ver os Teus Pés?, de 2014, onde as mesmas atrizes atuavam grávidas e do qual nasceu este Filhos das Mães, como uma espécie de segundo ato da mesma tragicomédia.

Maternidade, uma dança da solidão

No principio o que vemos são as atrizes, figuras públicas, Joana, Flávia, Vera, Katrin, Rita com roupas brilhantes como super-heroínas de uma série de desenhos animados dos anos 80. Com elas estão as filhas e os filhos, reais ou emprestados (Vera e Katrin optaram por não incluir os filhos na peça, que foram substituídos pelas sobrinhas do encenador Martim Pedroso). Crianças com menos de 3 anos, que riem, correm, irrompem em choro, querem atenção, mimos, fazer xixi ou mamar.

Dentro desta hiper-realidade as cinco mães evocam os dias em que registaram em palavras cada pormenor da evolução do seu bebé. Mas estas recordações, coleções de pequenas histórias íntimas para mostrar aos amigos, são sucessivamente quebradas pela lembrança dos pais, dos avós, dos outros filhos que morreram. Nada é estático, nada é plano. Não se pode falar da vida sem se falar da morte, da mudança. Flávia ensina à pequena Rosa as palavras que seu pai, que morreu quando ela estava grávida de 8 meses, lhe ensinou a ela na infância e assim fazendo da palavra o elo de ligação entre os vivos e os mortos entre o futuro e o passado, mostrando que estamos imersos numa dinâmica evolutiva e incerta.

Katrin, Joana, Vera, Rita e Flávia. Cinco atrizes que partiram da hiper-realidade das suas vidas para construir uma ficção sobre a maternidade no século XXI

Como explica Martim Pedroso: “Se o primeiro espectáculo insistia no tom da comédia, este já consideramos estar mais próximo da tragicomédia porque, na verdade, ser-se mãe é também lidar com a nostalgia do passado solipsista que não volta, o peso da responsabilidade, o medo da perda e o confronto com as zonas mais escuras da existência humana. Como diz Eurípides numa das falas do Corifeu da Medeia: os mortais que não sabem o que é ter filhos são mais felizes do que aqueles que são pais. Pois não sabemos se os filhos trazem alegria ou amargura e a sua ausência poupa aos mortais muitas penas… ”

Na segunda parte, já sem as crianças em cena, elas passam a ser Hécuba, Medeia, Jocasta, Sophia, poderosas e frágeis, dançando nuas, mostrando as cicatrizes reais e imaginadas, as cicatrizes da carne e as da alma, dobram amorosamente as roupas pequeninas, ou recolhem-nas como lixo. Vestem-se de cabedal negro, como guerreiras punk contra um exército de gente que, dizem, “ter fechado a maternidade dentro de uma série de imagens filtradas, estereótipos, felicidade encenada”, usam o sarcasmo e a auto-ironia contra si mesmas e contras as mães que, em conversas de café se digladiam para ver quem é a melhor mãe, a mais esbelta, a que tem o filho mais bonito.

“E tu, já voltaste ao teu corpo? Já voltaste ao teu corpo?”, repetem em esgares de riso e maldade. São meninas e são mães. Vêm à boca de cena e interpelam-nos nos olhos: Quem é que tem um casamento feliz? Quem é que se sente uma mãe feliz? Que marcas é que o teu filho deixou no teu sono? A tua relação com o sexo mudou? Como arranjar espaço dentro de si para amar os filhos no meio de tantas regras, de tanta gente a dar palpites, de tantos especialistas, médicos, comentadores? Como não submergir ao tempo, à passagem do tempo, ao medo, ao medo, ao medo.

Na terceira parte do espetáculo, que tem no total 1 hora e 45 minutos, o exercício de projeção no futuro é divertido e arrepiante. As atrizes interpretam aquilo que imaginam que os seus filhos serão no futuro. E daqui a trinta anos em que pessoas se tornaram estas crianças que agora correm por ali? “É uma forma de mostrarmos a nós mesmas e aos outros que, por mais que façamos, não temos mão no que a vida os tornará. Isso é algo que para sempre nos escapa”.

“Filhos da Mãe” está em cena entre 9 e 18 de Fevereiro, sempre às 19 horas na Sala-Estúdio Mário Viegas/Teatro S. Luiz, em Lisboa. Nos dias 24 e 25 de fevereiro estará no Teatro Rivoli no Porto. Em Maio segue em digressão por algumas cidades do país. No dia 12 de fevereiro há uma Conversa com a equipa artística após o espetáculo, moderada por Statt Miller.