Depois de terem subido ao palco na sexta edição do festival Semibreve, em Braga, em Outubro passado, Moritz von Oswald e Rashad Becker regressam a Portugal esta sexta-feira, 10 de Fevereiro, para um concerto único no Teatro Maria Matos em Lisboa. Ambos são nomes incontornáveis da história da música eletrónica e experimental dos últimos vinte anos. Conheceram-se em Berlim na década de 1990. Moritz fundou em 1993 a editora Basic Channel com Mark Ernestus e em 1995 criaram a Dubplates & Mastering, ainda hoje um santuário para masterização de álbuns de música eletrónica e experimental (e não só).

Rashad Becker começou a trabalhar na Dubplates & Mastering pouco depois e ao longo das últimas duas décadas tornou-se num dos nomes mais omnipresentes da música eletrónica e experimental, sobretudo graças aos seus trabalhos de masterização. Em 2013 começou a editar em nome próprio e até ao momento lançou dois álbuns/volumes de uma série intitulada “Traditional Music of Notional Species”, que são exemplos belíssimos e concretos de como é um género musical inesgotável, surpreendente e riquíssimo. Rashad anda a criar música para um universo que imaginou e estivemos à conversa para perceber o que gerou essa vontade e o que irá apresentar com Moritz von Oswald no Teatro Maria Matos.

Trabalha de perto com o Moritz von Oswald há, pelo menos, vinte anos, desde que começou a trabalhar na Dubplates & Mastering. Como surgiu esta recente colaboração ao vivo?
Para dizer a verdade, este projeto tem cerca de sete anos. Inicialmente a ideia era trabalhar num álbum de piano com uma estética algo minimalista, concentrada na captura do som de uma única nota com uma série de processos na gravação: coloquei um microfone numa das faixas para acelerar o som das cordas enquanto a nota caía, de forma a criar um efeito na frequência do som; dois microfones estereofónicos em rotação para criar um efeito de ressonância; bem como microfones num painel de janela e outro tipo de aventuras a partir de microfones.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O ponto de partida do vosso espectáculo é o piano do Moritz von Oswald, um instrumento acústico. Como é que se desenvolve a partir daí e o que estão a tentar alcançar?
Tanto ele como eu partilhamos uma grande admiração pelo som do piano, por isso queríamos criar uma narrativa musical simples, com algumas restrições, e concentrar-mo-nos apenas no som. Pouco depois de começarmos a trabalhar nisso recebemos um convite para tocar ao vivo e foi aí que a componente eletrónica entrou no nosso plano. Mas o nosso desejo era continuar a perseguir a ideia de uma nota única. A ideia do piano e de uma nota única é uma analogia a um sonar, o som do piano define grande parte da atuação e vai comunicando com a eletrónica de um modo espectral.

Existe improvisação no vosso espectáculo? Quais são as vossas linhas de orientação?
Não consideraria como improvisação, mas como uma notação musical aberta. A parte eletrónica tem uma progressão clara, bem como as restantes anotações. A progressão no piano é mais livre, mas está bem definida numa escala. Existe um número bem definido de peças.

O projeto não é apresentado como um duo oficial. Existem planos para editarem um álbum no futuro?
Pessoalmente, preocupo-me mais com as atuações ao vivo do que em gravar a música. Na generalidade, mas também neste caso específico. Gravar este projeto implica uma abordagem completamente diferente. Tocar ao vivo é como “push media” e relaciona-se com as pessoas de uma forma muito específica, enquanto a música gravada interage de uma forma muito diferente com o ouvinte, por isso tem de ser concretizada de um modo muito diferente. O material e as ideias existem, como referi no início, contudo é a minha falta de ansiedade em editar álbuns que tem dificultado o lançamento de um.

Rashad Becker, como o vamos ver no Maria Matos

Viveu grande parte da sua vida na Alemanha. A música que a Basic Channel editava na década de 1990 era algo que lhe interessava? Foi uma influência?
Mais ou menos. Olhava para o techno com algum interesse, mas à distância. Um dos aspetos mais intrigantes para mim era a cultura da editora, em que o artista editava música que se enquadrava na filosofia da editora. Isso notava-se muito na Basic Channel e quando surgiu a Chain Reaction [uma editora irmã da Basic Channel] isso pareceu-me uma espécie de conspiração e atraiu-me bastante. A Basic Channel tinha uma série de músicos talentosos que iam além do conceito de género musical, um “gesamtkunstwerk” [palavra alemã que define uma obra de arte total, que utiliza várias linguagens de expressão artística]. Obviamente que eles tinham um método de trabalho consistente e fundaram uma linguagem musical que, apesar de eclética, era maior do que as influências que bebia. Eu admirava isso tudo, mas teve pouca influência na forma como comecei a trabalhar com som e música.

Como começou a trabalhar na Dubplates & Mastering?
Por proximidade social com as pessoas envolvidas na Basic Channel/Chain Reaction e todo o cosmos que se começou a desenvolver à sua volta. Algo muito normal na Berlim daquela altura.

O seu nome está associado a centenas de álbuns, alguns deles muito influentes para a música eletrónica das últimas duas décadas. Com a Dubplates & Mastering, são sempre valores seguros. Como se sente nesse papel?
Sinto-me algo alienado dessa ideia de valor seguro ou de “selling point”, embora esteja consciente disso. Nunca fizemos nada para potenciar essa dinâmica, essa ideia. Do nosso lado esse trabalho quer ser discreto. A atenção que se dá à produção e pós-produção na cultura musical é algo trágico para mim. Naturalmente eu quero dar o meu melhor no meu trabalho e concretizar algo próximo dos desejos dos músicos. Mas não considero que isso deveria ser uma referência cultural. Uma parte é amor, outra parte é serviçal à indústria. Pessoalmente, acho que nunca tive o impulso de ir ver quem fez a masterização num álbum que me intrigou ou gostei.

Moritz Von Oswald em foco no piano

O que o fez começar o Clunk, o seu estúdio de gravação e masterização?
Inicialmente a ideia era criar um estúdio de gravação e mistura, algo mais simples. Só queria ter acesso a um ambiente que me agradasse em aspetos técnicos, acústicos e de atmosfera. E como não conseguia encontrar isso em Berlim, decidi criar o meu próprio. Eu gosto dos aspetos sociais e artísticos dos processos de gravação e de mistura, criam estímulos que não existem no campo da masterização. Queria desenvolver as minhas aptidões e seguir a minha paixão pelo som captado por microfones. E, também, construir um espaço para gravar a música das pessoas à minha volta, com quem me relaciono, de forma social ou artística, e que lhes fosse acessível monetariamente.

Quando o primeiro volume de “Traditional Music of Notional Species” (Pan, 2013) surgiu foi uma grande surpresa. É um dos nomes mais omnipresentes da música eletrónica e, por isso, existia muita expectativa em relação ao que poderia surgir dali. Sentiu alguma pressão?
Nem por isso. Não senti qualquer pressão para editar algo e só o fiz porque o meu amigo Bill Kouligas [fundador da Pan, editora sediada em Berlim] insistiu. Há uns anos que tocava ao vivo e gostava de o fazer. Quando o Bill insistiu em editar um álbum, eu gravei alguma da música que andava a tocar. Tu não tens qualquer controlo sobre o que as pessoas vão fazer com a tua música e que tipo de papel isso vai ter na vida de alguém, por isso parece-me redundante pensar nisso. Confiei no método que estava a usar para conceber a música que estava a fazer, as reações que recebia das minhas atuações ao vivo e, claro, na apreciação e vontade do Bill em editar a minha música.

Ambos os volumes [“Traditional Music of Notional Species Vol. II” foi editado na Pan no final do ano passado] estão separados por “Themes” e “Dances” [um lado do vinil é composto por “Themes”, o outro por “Dances”]. Porquê?
Os “Themes” são música de cerimónias que estão associadas a várias coisas: funerais, casamentos, etc. É o meu desejo de fazer música funcional para diferentes realidades de uma sociedade ficcional. “Dances” são música social, que também podem estar associadas a um contexto, mas que não estão presas a uma situação ou a um tipo de público. Contudo, não sinto que sejam assim tão distintas pela sua forma, para mim funciona mais a ideia por detrás de cada peça do que propriamente a forma que elas tomam.

Ambos os álbuns foram editados na Pan. Nos últimos anos a editora tem mostrado ao mundo alguma da eletrónica mais corajosa e desafiante da atualidade. Para mim faz sentido que os seus álbuns tenham sido editados lá. Porque escolheu essa editora?
Em primeiro lugar, a minha proximidade e amizade com o fundador da editora, Bill Kouligas. Gosto de olhar para uma editora e sentir que há um movimento acontecer. E isso também interessa ao Bill, criar uma relevância e longevidade social com os artistas com quem trabalha. Existe algo de curadoria no trabalho do Bill. E eu aprecio muito isso.

O título sugere que está a fazer música para uma sociedade que não existe. Existe algo de único no som, como se estivesse a criar um universo de sons e melodias que não existem e, assim, criar o seu próprio universo (para mim é algo que vai além da música). Como é que consegue esse som e como é que o tem desenvolvido?
Os sons são sintetizados de uma forma muito convencional. A forma como existem deve-se mais ao que eu quero que esses sons expressem ou como olho para eles como entidades sonoras. Estou menos preocupado com aspetos técnicos. A maior parte dos sons são escritos como palavras e têm um extenso leque de disposições, características, condições (abstrato ou menos abstrato) e recebem um nome antes de eu me sentar e começar a sonorizá-los.

Tem planos para continuar a povoar esse universo com sons?
Absolutamente. Mas o ciclo “Traditional Music of Notional Species” está em pausa, de momento, porque comecei um outro: “Based On A True Story”. Estou a tentar arranjar uma forma de tornar ocorrências históricas importantes, com uma importante componente social histórica, em peças. Atualmente estou a desenvolver três peças nesse sentido: uma para um conjunto de cordas em Berlim, outra para um novo conjunto musical em Nova Iorque e outra que é puramente sintética, pensada como um programa de rádio.

Concerto esta sexta, 10 de fevereiro, no Teatro Maria Matos, em Lisboa; bilhetes entre 7 e 14 euros