No terceiro dia do julgamento dos Vistos Gold foi ouvido Abílio Silva, inspetor do Instituto de Registos e Notariado (IRN). Considerado pelo Ministério Público (MP) como o braço-direito de António Figueiredo, ex-presidente do IRN e principal arguido do processo, Silva negou todas as acusações.

O inspetor, pronunciado para julgamento de um crime de corrupção passiva e de um crime de recebimento indevido de vantagens, foi questionado pelo juiz presidente pelas ações de formação dadas por funcionários do IRN, que tiveram lugar em Luanda entre 2013 e 2014, no âmbito do Protocolo de Cooperação assinado entre Portugal e Angola.

O MP suspeita que Figueiredo tenha beneficiado de forma alegadamente ilícita com os acordos de cooperação assinados entre o ministérios da Justiça de Portugal e Angola, nomeadamente participando no capital de diversas empresas portuguesas através de diversos funcionários do IRN que trabalhavam com a Merap Consulting. Esta empresa de Eliseu Bumba, por seu lado, tinha um contrato de prestação de serviços com o governo angolano, agindo como uma espécie de direção-geral do Ministério da Justiça de Angola.

A formação de funcionários públicos angolanos, através de funcionários do IRN, foi uma das áreas de negócio explorada pela Merap Consulting. O MP diz que os formadores portugueses receberam entre 2.500 e 5.000 dólares em dinheiro vivo por cada formação — valor que a acusação afirma que é muito superior ao que deveria ter sido pago a título de ajudas de custo.

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Inspetor admite pagamentos em numerário por formação

De acordo com Abílio Silva, toda formação foi “acompanhada por pessoas do Ministério da Justiça de Angola” e a Merap foi responsável “por toda a logística” das ações de formação, como por exemplo transportar os funcionários do aeroporto para o hotel e do hotel para o centro onde decorriam as formações.

O inspetor confirmou ainda ter recebido cinco mil dólares em dinheiro por uma formação e dois mil e quinhentos dólares por uma outra. Este dinheiro seria para pagar aos funcionários do IRN, mas Abílio Silva disse não ter recebido dinheiro a título de ajudas de custo. Quanto ao motivo por estar a receber em numerário, o funcionário disse ter-lhe sido explicado que esta seria “a única forma” de serem pagos pelos seus serviços, uma vez que o Governo angolano não podia “fazer transferências” em kwanzas.

Questionado sobre se tinha conhecimento que estas ações de formação serviriam para esconder negócios que envolviam António Figueiredo, Abílio Silva afirmou que foi sempre confrontado com “documentos oficiais de Angola”, acrescentando que “não havia razão nenhuma para achar” que havia alguma ligação ao ex-presidente do IRN.

“Na minha mente, sempre esteve em causa uma formação no âmbito no Ministério da Justiça de Angola e não de uma empresa privada”, explicou.

“Fomos comidos de cebolada”

O papel dos funcionários do IRN no processo de modernização da Justiça angolana também foi outro assunto abordado durante a sessão de hoje. Segundo a acusação, o Ministério da Justiça angolano contratou o escritório de advogados ACPC, tendo-lhes pago entre 300 a 400 milhões de euros para procederem a essa modernização. O escritório subcontratou a Merap para assegurar o “controlo da execução do plano” de revisão dos códigos de Registo Civil, Predial, Comercial, Automóvel e Notariado. Em troca, a empresa de Eliseu Bumba receberia cerca de um milhão de euros. A Merap, por sua vez, subcontratou os funcionários do IRN para procederem a elaboração desses códigos.

Abílio Silva confirmou esta situação. “O Ministro da Justiça tinha adjudicado o trabalho a uma sociedade de advogados. O prazo para entregar códigos ao presidente de Angola estava a esgotar-se e o trabalho não estava feito”, afirmou o inspetor, acrescentando que António Figueiredo lhe tinha dito que este trabalho teria de ser realizado “fora de expediente”. Isto é, acumulando funções, caso contrário não seriam pagos.

Meses depois, o antigo responsável pelo IRN comunicou ao inspetor que lhe tinha sido feito um pedido formal por parte do Ministério da Justiça de Angola ao Ministério da Justiça português para que estes códigos fossem elaborados ao abrigo do Protocolo de Cooperação.

“Fomos comidos de cebolada. Ninguém recebeu dinheiro nenhum porque o trabalho foi apresentado no âmbito da cooperação”, afirmou Abílio Silva.

“Não recebi nenhum envelope de mil seja o que for”

Durante a sessão foi ainda ouvida uma escuta de uma conversa telefónica entre António Figueiredo e Abílio Silva, onde falavam de lembranças dadas por um dos administradores da Coimbra Editora, João Salgado, na altura do Natal de 2013.

Salgado está acusado como autor de um crime de recebimento indevido de vantagem.

A Coimbra Editora foi responsável pela composição gráfica e edição do livro “Código de Registo Civil Anotado e Legislação Complementar”, que seria publicado em Angola por conta de Eliseu Bumba. A editora cobrou cerca de 10 mil euros à Lusomerap, uma filial da Merap Consulting, por este serviço. Desse negócio, segundo o DCIAP, Salgado terá acordado dar uma comissão a Figueiredo, por ter proporcionado o negócio, e a Abílio Silva. Essa comissão, de acordo com o Ministério Público, foi paga num envelope com mil euros dentro de um livro a António Figueiredo e Abílio Silva. “Mil era muito pouco, não dava para nada”, ouviu-se no sala do tribunal, mas nenhum dos arguidos especificava a que se referiam.

E Abílio Silva voltou a não fazê-lo esta tarde. O inspetor explicou que recebeu efetivamente um saco com um livro e com um cartão de boas festas dentro de um envelope. Confrontado com a escuta, Abílio Silva mostrou-se inicialmente hesitante quando tentava justificar o telefonema e depois optou por não responder às questões colocadas pelo procurador. Mais à frente, garantiu nunca ter recebido qualquer dinheiro por parte de João Salgado.

“Não recebi nenhum envelope de mil seja o que for”, afirmou o inspetor.